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Читать книгу: «Contos», страница 4

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O VENTURA

Quando começou de namoro com a Maria Eduarda, ainda não havia carreiras de vapor. Faziam apenas concorrencia aos catraeiros de Belem os omnibus immensos da Companhia, que de meia em meia hora passavam, chocalhando por aquella estrada fóra até ao Pelourinho, uns vinte passageiros, a seis vinténs por cabeça.

A vida de barqueiro não era então das peores; e o José da Anastacia com o seu bom genio constante e o sorriso obsequiador, em que mostrava os dentes amarellados pelo tabaco, quasi da côr do rosto requeimado pelas soalheiras do Tejo, conquistára as sympathias de muitos, que preferiam o bote d'elle e a viva conversa do algarvio, á velocidade pacata dos churriões da Companhia.

Era vel-o quando, por exemplo, tinha de transportar até ao Terreiro do Paço a familia do Conselheiro, azafamado, logo desde manhã, lavando o bote, arranjando o toldo, remendando a bandeirinha portugueza, dadiva das meninas, e que fluctuava lá no alto, no angulo da véla, com mais donaire e, com o ser pequena, com mais orgulho que a bandeira branca de cruz vermelha d'uma náu da India.

O Conselheiro, muito amigo d'elle, nunca lhe chamava senão o Ventura. Tinha-lhe ficado a alcunha. E bem a merecia, quando sentado ao leme, com a mão junto aos sobrolhos e os olhos piscos por causa do sol, todo cheio de si e do seu barco, sorria satisfeito, vendo a bandeirinha a fluctuar lá em cima, e a prôa do bote, um pouco tombado, riscar o espelho azul, em que as ondas só lá muito longe se encarneiravam, nas Bailadeiras, junto ao Pontal de Cacilhas.

E os véos azues das filhas do Conselheiro esvoaçavam alto, erguidos pelo vento.

Á volta, como não havia pressa, preferiam vir a remos. O José, para entreter, contava historias e fazia reflexões, que as meninas approvavam, meneando lentamente a cabeça, sentadas uma de cada lado do barco, fitando os olhos nas margens do Tejo que deslisavam lentamente. E elle, fincados os pés no banco deanteiro, de mangas arregaçadas, deixando ver os musculos possantes dos braços cabelludos, duros como seixos e palpitando com o esforço, sorria n'uma felicidade santa e levantava compassadamente os remos, d'onde cahiam enfiadas de perolas, que os ultimos raios do sol cravejavam de pontos luminosos.

A Anastacia, uma velhinha, que morava n'uma agua furtada, quasi ao cimo da Calçada da Ajuda, benzia-se reconhecida cada vez que o José entrava em casa, atirando para cima da mesa os ganhos do dia; e, pegando na cabeça do filho com ambas as mãos, enterrando os dedos rugosos na basta grenha emmaranhada, beijava com ancia, mil vezes, sobre os cabellos seccos e duros, o amparo querido da sua viuvez.

Elle, um homemzarrão com vinte e tantos annos, adormecia, logo depois da ceia, com a cabeça reclinada no collo da mãe, cançado, mas feliz, contente n'aquelle ninho.

– José, vamos, acorda, dizia ella, dobrando o serão, quando na torre da Boa Hora batiam vagarosamente as dez.

O José levantava a cabeça e passava a mão pela nuca, cheio de somno.

– Que é isso homem? Põe-te em pé, pedaço de mandrião!

Com os olhos meio cerrados, encandeado, dirigia-se então para o quarto, murmurando:

– Sua bençam, minha mãe.

E não pediam a Deus senão um futuro de dias assim.

***

Pelos fins de outubro, uma tarde, o José lembrou-se de deitar por ali fóra, até Monsanto.

Ia passeando devagarinho.

O vento soprava do noroeste. Ao meio dia tinha dado aquella volta, e o José achava-lhe geitos de querer saltar para a barra. Quando chegou ao cimo da serra, viu o Bugio rodeado de espuma e as ondas cahindo d'alto, lá por detraz, ao pé da Costa.

Diabo do inverno! Começava cedo.

O sol descia. O José parou um bocado a vel-o mergulhar na espuma.

Começou soprando mais rijo o vento, e, quando o sol desappareceu, fechava o horizonte uma lista negra, franjada de oiro, que ameaçava engrossar.

Pois paciencia! Felizmente lá estavam na gaveta as economias do verão. Todos os annos havia inverno e na casa d'elle nunca houvera fome, graças a Deus.

E o José levou a mão ao barrete.

Sentia-se feliz, não tinha cuidados, o dinheiro entrava-lhe pela porta dentro; teria até demais, se fosse a comparar, porque a elle nada lhe faltava e a muitos faltava tudo.

Lembraram-lhe então certas historias. Aquella mulher a quem uma vez alugára o bote, porque a encontrára a chorar no Largo. Tinha deixado os filhos sósinhos em Caparica e estava ali com um vintem na algibeira; e elle alugára-lhe o bote pelo vintém, que acceitára, porque não queria envergonhal-a. E outra vez que elle se escondeu para o Conselheiro o não ver e alugar o bote ao tio Matheus, que havia dois dias não trabalhava e tinha a filha doente em casa, a tossir, a tossir, e elle sem dinheiro para lhe comprar o caustico?

Havia tanta pobreza!

Elle nada lhe faltava e até na algibeira trazia quasi sempre uns cobres, para o que desse e viesse.

E como levava sede, entrou n'uma taberna e pediu dois decilitros.

O taberneiro tinha sahido. Foi a filha quem veiu servir.

O José ficou um pouco enleado a olhar para a rapariga, quando esta lhe trouxe o copo trasbordando, deixando cahir no pires de barro grosso, branco, riscado de azul, um pouco de vinho em que ella molhava a unha do pollegar.

Para o gosto d'elle nunca vira mulher assim!

Levou a mão ao barrete, e disse com a sua educação costumada:

– Muito obrigado.

E ficou-se a olhar para ella, um pouco apatetado, querendo falar e não lhe occorrendo nada, sentindo como que um nó na garganta e um véo no entendimento, que o apouquentavam.

Era uma rapariga alta, magra, de cabellos castanhos muito finos, muito compridos, separados no alto por uma risca estreita, mostrando o casco branquissimo; a orelha pequenina; o nariz perfeito apesar d'uma pequena quebra; a bocca um quasi nada grande, com o beiço interior saliente, e uns olhos azues escuros, que entonteceram o José, quando n'elles demorou os seus.

Do outro lado do balcão, de mangas arregaçadas, um pouco enleada tambem pela ingenua admiração que percebia causar áquelle homem, lavava os copos n'um alguidar de zinco posto em cima d'um mocho, e collocava-os depois na prateleira de pinho pintada de azul, virando para o ar os fundos, onde, como aureolas, se alastravam grandes nodoas roxas rebeldes á limpeza.

A noite vinha-se approximando. A taberneira raspou um fosforo na prateleira e, desviando a cara dos fumos do enxofre, accendeu o candieiro de petroleo.

– Muito boa noite, disse.

– Boa noite, respondeu o José, erguendo-se um pouco.

E nunca musica para elle valêra aquella voz.

O vento fóra soprava rijo e o ramo de loiro á porta raspava na parede.

O José levantou-se e abriu o saquinho d'algodão. Com voz sumida pediu por favor dois charutos cortados e pagou, levando a mão ao barrete, sem se atrever a mais palavra.

Por toda a estrada veiu pensando na rapariga. Trazia-a indelevelmente fixada na memoria, e até nas mais pequenas particularidades, uns signaesinhos espalhados pelo nariz e um outro sobre a palpebra um pouco mais accentuado.

E repetia mentalmente, muito enlevado, as unicas palavras que lhe ouvira: – «Muito boa noite. Muito boa noite.»

***

A mãe extranhou-o. Em vez de adormecer para ali, depois da ceia, como costumava, pregou os olhos no tecto, e ficou-se a mascar um bocado de charuto, a mascar, ora serio, ora sorrindo a alguma imagem que entrevisse, como quem faz castellos no ar, que os vê cahir de repente e logo erguerem-se mais alto. Nem sequer reparou nos olhares prescrutadores que a mãe, de vez em quando, lhe lançava por cima dos oculos.

Mas de repente a pobre Anastacia deu-lhe o coração um baque. E ella que nunca se lembrára d'aquillo! Pois não era certo que tarde ou cedo havia de acontecer?

E com um fundo suspiro de saudade pelo bom tempo que passára, murmurou com os olhos embaciados:

– Queira Deus que seja para bem.

O José encarou-a, despertado por aquella voz.

Ergueu-se e approximou-se da janella, que abriu.

O vento soprava do sudoeste. Ao longe a barra roncava medonhamente. Grossas cordas d'agua entraram no quarto.

– O inverno! disse elle, fechando a janella.

A velha encolheu os hombros.

E depois, com certo ar malicioso, já conformada:

– Ainda agora para ti começa a primavera!

***

Pouco tempo durou.

Uma noite, o José sentou-se tristemente á prôa do bote e remou devagar para o largo. Chegado a meio do rio, deixou os remos e, traçando a perna, fincando a barba no punho cerrado, deixou ir o barco na corrente. Poz-se a olhar, sem as ver, para as mil luzes, que no quadro sobre as nodoas escuras dos navios brilhavam como lentejoulas no panno negro dos caixões. Estava triste o José naquella noite.

E quando reparou, á pôpa do barco, na alcunha d'elle – Ventura – pintada em grossas letras brancas sobre uma variegada rosa dos ventos, sorriu amargamente e murmurou com ironia: – Ventura!

O bote arrastado pela vasante passou para além da Torre, e o José perdeu de vista os pontos luminosos do quadro. Apenas, ao longe, avistava um candeio baloiçando-se sobre a facha projectada, tremeluzente.

Que tristeza aquella!

O bote corria para a barra e começava saltando na crista das ondas. Fazia frio, e o Ventura encharcado, tremia.

De repente, o candeio desappareceu. Então o José ergueu-se, pegou novamente nos remos, virou o bote, começou a remar com força para o lado de Lisboa, arquejando, como a fugir d'um perigo. Mas de novo deixou cahir os braços, em grande prostração, e a cabeça inclinou-se-lhe sobre o peito. O bote virou devagarinho e continuou em seu caminho fatal.

O farol do Bugio circulava lentamente, e a luz fixa da Torre de S. Julião parecia examinal-o com uma grande curiosidade idiota, nunca satisfeita. O bote passou entre os dois faroes.

As ondas marulhavam de encontro ás bordas do barco, e a musica d'ellas era triste como o coração do Ventura.

E fôra o Conselheiro, o seu melhor amigo, quem lhe enterrára o primeiro espinho!

Ao principio corrêra tudo menos mal. Muitos tinham medo do vapor, e mais que todos o Conselheiro.

– Nada! dizia elle ao Ventura, batendo-lhe com a mão no hombro. Estes progressos são muito bons, mas cá para mim não servem. Um bello dia…

– Zaz!.. Pum!.. concluia José, rindo muito e imitando com os braços um grande fogo de vistas, que era a caldeira a rebentar.

E, dez dias depois, o José cumprimentava-o com o seu melhor sorriso, e o Conselheiro passava cheio de pressa, afogueado, levando as filhas a reboque, muito coxas com as botas curtas, fazendo todos signaes desesperados com os chapéus de chuva para o vapor que apitava, prompto a largar.

Bem lhe tinha dito o pae da Maria Eduarda:

– Muda de vida, José, ou prégo-te a peça.

E, como o José não mudava de vida nem a caldeira rebentava, tinham pregado a peça ao Ventura.

Foi n'um dia em que o catraeiro, pelo maior dos acasos, tinha ganho dois tostões. E, em vez de os entregar á mãe, foi á loja da esquina comprar um collar de contas para levar á namorada.

– Está cá, menina Maria? perguntou da porta com o coração a bater.

– Sahiu, respondeu lá de dentro a voz do pae. Queres-lhe alguma coisa?

– Nada, respondeu.

E ficou encostado á porta, esperando a noiva.

Lá dentro o taberneiro virava na frigideira as sardinhas que aloiravam, bailando e cantando uma cantiga festiva no azeite a ferver.

E o Ventura á porta apertava na mão a caixinha das contas, e tinha fome.

– Olá, seu Manuel Joaquim, disse entrando alegremente na taberna um cocheiro de grandes melenas oleosas, repuxadas para diante das orelhas, cara escanhoada, chapéu de capa d'oleado deitado para traz. Já vieram as senhoras?

– Ainda não, mas não podem tardar. A pequena disse á mãe que haviam de voltar cedo por você cá vir… Seu maroto!..

– Ó seu Manuel Joaquim!.. Eu cá dou-lhe a minha palavra…

– Mau! mau!

E, largando as Sardinhas, chegou-se ao pé do cocheiro e disse-lhe ao ouvido:

– Olhe que a ceia está prompta e tenho ali uma pinga…!

O Ventura á porta, envergonhado, sem se lembrar de os matar a ambos, escondia o pé descalço atráz da perna nua e torcia nas mãos o barrete de lã esboracado.

E logo voltando, n'um desespero, atirou ao chão a caixa do collar. E as contas de vidro foram adiante d'elle saltando por longo tempo, fazendo uma bulha alegre de gargalhadinhas trocistas.

E a mãe áquella hora tinha fome…! E fôra talvez a fome que a matára!

Lá estava enterrada na valla dos pobres, lá muito longe, por detraz d'aquelles montes, que a lua a nascer, espargindo uma baça claridade, azulava docemente.

Estavam fóra da barra, o mar estava picado e o Ventura tremia.

***

No dia seguinte, ao amanhecer, foi encontrado, meio desfeito, para além de S. Julião, um bote abandonado, que tinha á poppa escripto n'uma variegada rosa dos ventos o nome do Ventura.

E quando soube da triste nova, emquanto aos olhos das filhas subiam saudosas e sentidas lagrimas, o Conselheiro, gravemente, lembrando-se do pouco tempo que durára a primavera do José, citou as rosas de Malherbe.

O PRIMEIRO SORRISO

Mal se tinham accendido as luzes no Colyseu, quando elle entrou devagarinho, triste, um pouco asmatico, meneando a cabeça pallida.

Parece que mais lhe pesava a corcunda n'aquella noite.

Andando pelo corredor estreito, que divide os camarotes dos logares mais baratos, foi encostar o queixo á teia de pinho, pintada de branco, junto do caminho atapetado, que a cantora devia seguir do camarim para o palco.

Era uma artista celebre a que se estreava. Com oito dias de antecedencia tinha-se espalhado com profusão pela cidade, collado aos vidros das portas dos armazens de musica, pendurado em quadros ás esquinas das ruas, o retrato lithographado de mademoiselle Eva d'Avenay.

Um dia, o corcunda, passeando depois do jantar, como costumava, pela rua do Oiro, erguendo a cabeça, deu, de subito, com um d'aquelles retratos na loja d'um livreiro.

Parecido ou não, representava uma mulher lindissima.

Ficou extatico um momento; sentia tremer-lhe o coração um pouco, e como que dois dedos apertarem-lhe amorosamente a garganta.

Entrou envergonhado, e com voz sumida perguntou ao caixeiro se aquillo se vendia.

– Um tostão.

Elle que nunca olhára para mulher senão cá de muito baixo, coitado, assentando no meio da espinha as abas do chapéu, que (facto pouco vulgar) por detraz é que amolleciam, podia finalmente, por um tostão (barato!) contemplar uma mulher bonita á vontade, sentado commodamente, sem ser visto e sem ter de córar.

Quando sahiu da loja, levando na mão o rolinho de papel pardo, que embrulhava a lithographia, caminhou mais depressa, quasi alegre, menos asmatico.

Chegou a casa, desdobrou o retrato sobre a mesa, encostou n'ella os cotovellos, e, com as fontes apertadas nos punhos cerrados, passou parte da noite em contemplação da extranha formosura.

Parecia-lhe que afinal aquella mulher tinha que reflectir para elle uma parte de tanto amor, que todo lhe estava dando e que era o primeiro que sentia.

Desejos haveria tido, mas amar… Quem? Se, quando passava, todos se riam e ninguem, ninguem, jámais sorrira para elle!

Quando recordava tempos longinquos, via, como atravez d'um nevoeiro, uma mulher a quem elle estendia os bracinhos magros, que se lhe debruçava sobre o pequenino berço – tão pequenino! – e que o envolvia n'uma atmosphera de amor, beijando-o muito. Mas essa mulher tambem não sorria… chorava.

Chorava naturalmente de vel-o tão fraquinho, tão feio, tão infesado. Se o visse agora, cheio de rugas precoces, com os cabellos alvejando-lhe nas fontes, e triste sempre, sempre tão triste!

Por isso contemplava aquelle retrato, como se fôra possivel aquella mulher loira, voltar a cabeça no papel e enviar-lhe, só para elle, aquelle sorriso que, por todas as esquinas, por toda a parte, ella enviava… para quem? – para coisa nenhuma; que o retrato era a tres quartos e ninguem sabia para onde olhava.

***

Os porteiros, cada um á sua porta a receberem os bilhetes, cantarolavam os bocejos e assoavam-se com estrondo para espertar. O theatro continuava ás escuras.

Um homem gordo entrou devagar, com as mãos nas algibeiras do collete, assobiando por entre dentes. Sentou-se, deitou as pernas para cima da cadeira que lhe ficava defronte, poz o lenço entre o pescoço e o collarinho, e, tirando um palito da algibeira, poz-se a espalitar os dentes, com um ar massado.

Duas ou tres filas mais adiante, um outro abanava-se pachorrentamente com o chapeu, virando um bocadinho a cara para lhe ir o fresco ás orelhas.

Conheciam-se e começaram conversando em voz alta:

– Olá, Conselheiro! Então tambem deitou até cá?

O homem gordo encolheu os hombros.

– Não ha mais nada que fazer!

E depois de espalitar um bocado:

– Que isto cheira-me a fiasco.

– Ora! disse o outro com ar convencido e para estar de acordo. A tal mulher…

– A gente cai em cada uma…! terminou o Conselheiro.

E, encostando a cabeça para traz, deu largas a um bocejo formidavel.

Um arrumador, que passava n'aquelle instante, sorriu-se aduladoramente, curvando-se muito.

– Senhor Conselheiro…

– Adeus, seu José.

E fechou os olhos, como se estivesse dormindo.

Ah! se o corcunda não andasse tão rasteiro, se não fosse tão fraquinho, como perguntaria áquelle homem, frente a frente, com que direito bocejava, quando elle estava ali sentindo o coração a estalar-lhe no peito!

Os musicos com os instrumentos dentro de saquinhos de chita, começaram a entrar, limpando o suor, resmungando arias, espreguiçando-se.

Deram oito horas. Chegaram umas carruagens a trote largo. O theatro encheu-se rapidamente.

Ouvia-se o sussurro das conversações e o ranger das varetas dos leques.

Os logares junto da teia, a que se encostara o corcunda, eram da predilecção de muitos; pouco a pouco foram-o empurrando, e elle apertado, afflicto com a asma, que logo o atacou violentamente, ouvia por detraz umas risadinhas zombeteiras. Sentiu n'uma orelha bater-lhe uma bolinha de papel. Um velho mal encarado, ao lado d'elle, estava de figa feita.

E resignado, agarrando-se aos balaustres da teia, esperava que fosse aquella noite a primeira feliz da sua vida.

Abriram as torneiras do gaz e a luz jorrou de repente.

Houve um sussurro maior. Muitos, que ainda se não tinham visto, cumprimentaram-se. Os elegantes das cadeiras apontaram os oculos para os camarotes e começaram tirando os chapéus.

O theatro transbordava.

Os musicos afinavam os instrumentos. Ouviam-se por entre as variações alegres da flauta as notas harmonicas das rabecas. O homem dos timbales batia notas surdas com a mão esquerda e apertava com a direita as escaravelhas.

Afinal entrou o regente, de casaca e gravata branca, cumprimentando os collegas, emquanto descalçava a luva.

Bateu na estante e ergueu alto o braço.

Houve uns schius! assobiados por alguns amadores, que a toda a salla impuzeram silencio.

O regente olhou para todos os musicos, demorou-se um instante e depois, descrevendo com a batuta um quarto de circumferencia, fez signal ás rabecas, que logo começaram tocando muito piano, em unisono.

Era com certeza mademoiselle Eva d'Avenay quem ali attrahia a maior parte dos espectadores. Os conversadores pouco a pouco foram elevando o tom e, como as rabecas sósinhas continuavam tocando pianissimo, havia o que quer que fosse fantastico n'aquelle maestro de grande cabelleira cahindo-lhe até á golla da sobrecasaca, elevando alto, muito alto, a batuta, e deixando depois cahir o braço a tremer, a tremer, commandando uns arcos que se mexiam como puchados por um só homem, mordendo cordas que não tinham som.

Decididamente o corcunda suffocava.

De repente, a um signal energico do regente, os metaes vibraram enchendo a sala de notas alegres, vivas, que n'um instante, como por encanto, cortaram as palestras. Foi um relampago de alegria. O regente sorriu-se delicadamente e as rabecas continuaram sósinhas no meio da distracção geral.

Um gaiato gritou lá de cima:

– Muito bem!

Tinham acabado felizmente.

A respiração do corcunda era um apitosinho.

***

Instantes depois, corria-se uma cortina e encaminhava-se para o palco mademoiselle d'Avenay.

Houve um sussurro admirativo. Muita gente ergueu-se. Ouviram-se vozes:

– Abaixo!

Ella, já no palco, sorria impassivel, cumprimentando o publico, olhando em volta, muito serena.

Alguns enthusiastas davam palmas.

O Conselheiro olhou para o amigo e fez-lhe uma cara como quem diz: – de truz!

O regente muito amavel curvou-se para a cantora e fez-lhe baixinho uma pergunta.

Respondeu que sim, muito risonha, muito amavel.

As rabecas preludiaram.

Ella concertava o decote e alisava o cabello na testa.

Era uma mulher em todo o esplendor da belleza dos trinta annos, de elegancia distincta e intelligente, alta, com o busto quebrado um pouco na cintura, o peito forte, braços admiraveis, hombros muito redondos, e nas costas, bem ao meio, uns dois ou trez signaes, que pareciam ter-lhe sido dados, de caso pensado, pela natureza, para que ninguem julgasse que aquelle busto era de marmore. Os olhos azues tinham um olhar profundo e os cabellos loiros e finos emmolduravam uma testa muito lisa, como de virgem de quinze annos.

Quando cantava, a bocca sympathica, fresca, sorria sempre, alegrando-se aos cantos com duas pregas infantis.

Do logar onde estava, o corcunda via-lhe o perfil sereno, a longa trança doirada e todo o vulto branco salientando-se na massa escura dos espectadores agglomerados nos degraus em amphitheatro do outro lado da sala.

Quando ella acabou de cantar, toda a platéa applaudia, delirante.

O corcunda bem queria dizer – bravo! mas sumira-se-lhe a voz.

Mademoiselle d'Avenay cantou tres vezes n'aquella noite e o delirio crescendo sempre!

Agradecia muito reconhecida, pondo a mão no peito, fazendo ranger a seda do vestido.

Já os musicos se tinham retirado, já o illuminador começava fechando as torneiras do gaz e ainda novas ovações eccoavam na sala.

Ella tornava a subir ao palco, agradecendo, muito amavel, sorrindo como no retrato, para o ar, para coisa nenhuma.

E por onde passava deixava no rasto um cheiro forte, bom, que embriagava o corcunda.

***

Achou-se afinal sósinho.

Umas familias, que se tinham encontrado á sahida, conversavam, emquanto as senhoras vestiam os chailes e os homens accendiam os cigarros.

Que fazia ali o corcunda? Viera na esperança de que essa mulher ideal, como elle não sonhara poder haver no mundo, reparasse no pobre verme e do seu pedestal lhe fizesse a mercê d'um olhar.

Mas nem ella o vira, nem elle pudera ajudar á ovação. Bem tinha deitado os bracinhos por entre os balaustres para applaudir; se não fosse a asma, teria gritado: bravo! mil vezes. Mas se era tão fraquinho…!

Estava extenuado, meio morto; a cabeça estalava-lhe.

Sentou-se n'um dos degraus da geral e escondeu o rosto entre as mãos.

Pouco a pouco, ia perdendo a memoria do que se passára, conservando apenas a consciencia de que era um desgraçado.

Accordaram-o uns passos de mulher.

Ergueu a cabeça.

Mademoiselle d'Avenay, toda embrulhada em rendas brancas, sahia do camarim muito risonha, conversando com uma velha, que a acompanhava.

Levantou-se. Ella tinha de passar por ali e elle tremia.

Quasi sem forças, desvairado, mal poude pronunciar:

– Bravo! Bravo!

Ella parou um pouco assustada. Vendo-o tão pequenino, na meia escuridão, julgando-o provavelmente uma creança, tocou-lhe com dois dedos na cara. Mas, picando-se nas barbas, retirou a mão e disse:

– Pardon, monsieur.

E quando passou… sorriu-se para elle.

Возрастное ограничение:
12+
Дата выхода на Литрес:
25 июня 2017
Объем:
100 стр. 1 иллюстрация
Правообладатель:
Public Domain

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