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Читать книгу: «Contos», страница 6

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NA BIQUEIRA

Ella tem uns olhos azues tão bonitos!.. Mas se eu vi! Elle a olhar para cima… e ella a fazer signaesinhos com o lenço!.. Vi; ninguem m'o veio dizer… Fui eu que vi!

E estas cartas que me escreveu! Talvez em nenhuma fale verdade. Esta ultima é toda mentira com toda a certeza. Quando a escreveu, já foi depois de ter polcado com elle… E chama-me seu anjo a infame!

Como póde um homem baixar até morrer por uma mulher assim! Morrer, sim, está resolvido… vou matar-me.

Meu pobre pae, coitado! Sempre com tantos sacrificios por minha causa! O que dirá, quando souber que me suicidei? Pobre velhinho! É capaz de morrer de desgosto! Tinha vontade de lhe escrever; mas não tenho animo. Nem animo nem papel. Gostava de me despedir… O resto do papel ainda o gastei a escrever áquella desgraçada!

Ah! mas vou afinal vingar-me!.. Hei de atribular-lhe a vida com remorsos!

Custa-me tanto morrer!.. Dizem que só os cobardes é que se matam. E eu acho que é preciso ter animo, muito animo!

Mas está decidido.

Vou morrer enforcado… Dizem que não doe nada… Mas morrer! Quem foi que disse que não doe? Aqui está a corda. Exactamente do tamanho preciso para que, de manhã, quando ella abrir a janella, me veja pendurado, em frente dos seus olhos, na biqueira do meu telhado.

É preciso não hesitar… Infame! Mas que mulher tão infame! E tem uns olhos tão bonitos!.. Que besta… o outro!

Bem! agora ponho-me a chorar! São saudades de meu pae!

Aquella biqueira tentou-me. É de zinco, parece muito forte, algum tanto virada para cima.

Vamos.

Está frio cá fóra… Chovisca… A noite é escura!..

Ali estão as janellas do quarto d'ella, d'onde tanta vez olhou para mim, d'onde tanta vez me falou e me atirou beijos com as pontinhas dos dedos!.. Que mentira! Agora faz o mesmo ao outro!

Está frio! Será bom vestir o sobretudo… Assim estou melhor, mais conchegado… para morrer!

Cá estou outra vez a chorar!

Ámanhã, quando abrires as tuas janellas, has de ver, mesmo em frente, o meu corpo, baloiçando-se ao vento soturnamente.

O peor é se fico com a lingua de fóra… É tão feio uma lingua de fóra! Eu fico tão feio!.. E os olhos…! Os olhos d'um enforcado…!

Mas está decidido, está decidido. O enforcado é o mais limpo dos suicidas.

Se não fosse o medo já lá estava. Um suicida é um valente!

Atemos a corda. Mau! o telhado escorrega…! Se eu cahisse lá abaixo!.. Só pensal-o me arripia todo!

D'ali é que ella erguia os olhos tanta vez para a minha trapeira!

Devagar… Assim.. Parece-me que o laço está bem dado… Quasi que não vejo com as lagrimas… Está bem dado, está; está seguro.

O melhor é descer pela corda, e depois, lá em baixo, quando tiver chegado ao fim, metto o pescoço no laço, segurando a corda, devagarinho, muito devagarinho… e deixo apertar.

Como é triste morrer assim tão novo, tão cheio de vida!.. Morrer!.. Chega a ser estupido…! porque afinal eu tinha um futuro talvez brilhante… Um praticante de pharmacia… Morrer assim tão novo!

Mas como isto faz chorar!

Está frio!

Ella dorme…! Se adivinhasse…!

Não pensemos mais n'isto. Sejamos homem!

Devagarinho…!

Estou suspenso sobre o abismo! Uma altura de cinco andares…! Sinto um frio na espinha…! Se as mãos se me escapassem…!

Não me despedi bem do meu quarto. Devia de voltar para cima. Afinal fui ingrato com elle. Tive ali momentos bons.

A corda dá-me cabo das mãos. Devo estar quasi na ponta… Cá está o laço. Estou mesmo, mesmo em frente das janellas. Se me baloiçasse um bocadinho, tocava-lhe com a ponta do pé nos vidros.

Punhamos o laço ao pescoço. Foste tu, mulher devassa, que me fizeste esta gravata!.. Agora deixemos apertar devagarinho.

Apre! É aspera a corda!

É horrivel morrer-se assim! Se ella me visse, se arrependesse e me salvasse!

Já tenho os braços cançados…! Que tentação de voltar para cima!

Morrer…! Mas é uma desgraça!.. uma tolice!

Hein? Que é isto? Pareceu-me sentir estalar o zinco da biqueira!..

Talvez fosse engano… Mas o melhor é voltar… verificar…

Não, não é engano, que horror! Estalou, é certo. Ao mais pequeno movimento estala e dobra! Se verga demais, o laço escorrega e eu esmigalho-me lá em baixo nas pedras da calçada!

Quem me ac…!

E se ella apparece á janella?

Doem-me os braços, já não posso mais!

Mas então é certo!.. Mas então vou morrer! Mas não quero, d'essa morte horrivel não quero!

E não poder subir…! Talvez com um esforço grande, apoiando os pés á parede… Mas o zinco estala cada vez mais, dobra-se todo…!

Se eu batesse as palmas ao guarda nocturno…? Mas como? Para bater as palmas seria preciso largar a corda… Se me pudesse segurar com uma só mão, despir-me com a outra e bater as palmas no…

Mas nem sei o que penso! Não posso suster-me só com um braço… Sinto faltarem-me as forças!.. E se ella abrisse a janella e me visse n'essa posição ridicula?

Agora é que é certo! agora é que tenho de morrer!.. E ninguem, ninguem me salva!

Tenho as mãos a arder; não posso mais. Quem me dera ter animo para gritar!..

Ainda que queira subir já não posso… E o zinco verga cada vez mais, ao mais pequeno movimento!

Parece-me que sinto passos…! É preciso estar muito quieto…! Valha-me Deus! O laço já correu um bocadinho…

Os passos approximam-se… É uma patrulha!

Ó camaradas!.. camaradas!.. Pchiu!..

Não são ladrões que tenho em casa, não senhor. Não vêem que estou pendurado?.. Acudam depressa!.. O zinco está todo dobrado! Depressa!.. Sim, senhor, acompanho-os á esquadra.

E o laço a escorregar!..

Depressa! A porta lá em baixo está aberta.

É só preciso arrombar a cá de cima.

Tolice! Porque não a deixei eu aberta tambem?

E se alguém me quizesse acudir?

Os passos approximam-se…

Graças a Deus!.. está a porta arrombada!

Acuda! acuda depressa!

Obrigado camarada!.. Não ponha o pé no zinco!..

Meu Deus!

Ó meu pae, coitadinho!

Que horror!

Ella tem uns olhos azues tão b…!

REQUIEM AETERNAM

Todas as tardes, quando o azul no alto do céu começava a desmaiar, ou já a enlutar-se nas pregas, pouco a pouco, serenamente accumuladas pela neblina da noite, recolhia a casa, aos solavancos sobre as pedras da calçada, a carruagem das velhinhas.

Espantosa, de grandes rodas espessas, ferragens desconjuntas, tecto esboracado, tinta bexigosa, puxavam-a dois cavallos brancos, magros, muito magros, de joelhos grossos, orelhas cahidas, choutando sem brio, coxeando dolorosamente, com um ar de philosophos sem ração a caminho da morte.

Atraz saltava a carruagem com um tinir de ferragens, soturno como um ranger d'ossos em dança macabra. E eu encostava aos vidros da janella a testa ardendo com febre, para ver a passagem d'aquellas duas velhinhas sympathicas, irmãs decerto, gemeas talvez, tão eguaes, com os cabellinhos bracos alisados sobre as testas enrugadas, as boccas reentrantes, os olhinhos apagados, tremulas, encolhidas como passarinhos com frio, com os mesmos fatos de luto, o mesmo ar tranquillo, o mesmo sorriso de bondade. Macrobias á espera que a morte viesse n'um beijo perfumado cerrar-vos para sempre os olhos, como devieis soffrer, cabeceando, sacudidas, empurradas brutalmente uma contra a outra pelas mollas duras, aos safanões das sob-rodas da calçada! Boas velhinhas, minha paixão unica, minha esperança d'um dia inteiro, quando eu vivia isolado com a minha melancolia, n'aquella casa onde o vento soprava tristezas, onde o sol nunca entrou e onde as corujas riam de noite!

O cocheiro, um velho muito velho, corcovado, segurando tremulamente as redeas, com as mãos pousadas sobre os joelhos, conservava um certo ar de casa nobre, apezar da nodoa esverdinhada, que se alastrava nas costas da sobrecasaca, e do chapéo de furta-côres, pequeno, de abas largas, arrombado, sem pêllo, com um velho galão todo oxidado, velho, muito velho, d'outros tempos muito melhores.

Que volta misteriosa dava todos os dias aquella carruagem, que ás tardes ali passava trepando pela calçada? D'onde vinham, para onde iam, em que palacio ou castello arruinado moravam as boas velhas? Quem eram? Nunca o soube.

E era talvez por isso que as amava tanto. Architectava historias fantasticas a respeito d'ellas, da carruagem, do cocheiro, dos cavallos, e, quando por fim ouvia o rodar pesado e o tinir das ferragens, sentia o coração pulsando rapido, a respiração difficil, um calor nas faces, como se em vez da decrepitude a caminho do cemiterio, fosse uma primavera cheia de flores e de mocidade, que ali passasse em grande aureola de luz, em nuvem subtil de perfumes.

Creio que as velhinhas, n'uma doce, apagada recordação de galanteios havia muito passados, adivinharam o meu amor, e olhavam para mim, risonhas, fazendo renascer faiscas nos olhos côr de cinza, que um sorriso bordava com ondas de preguinhas por cima das rugas! E eu, com a testa encostada ás vidraças, via desapparecer a carruagem fantastica, emquanto a noite descia lentamente e, muito desafinados, piavam lá no alto, em doidas correrias, os negros andorinhões.

Boas, santas velhinhas, benza-vos Deus!

A calçada subia em linha recta, tendo por fundo o céu ainda vermelho, áquellas horas. A carruagem levava uns cinco minutos até chegar ao alto, e lá em cima, esfumada pela distancia, com as grandes rodas salientes, tombadas para fóra, similhava uma grande borboleta negra, que a descida precipitava na rutilante fogueira do pôr do sol.

***

Pouco depois accendiam-se no céo muito pallido as primeiras estrellas. Então um doido, que morava no rez do chão, começava a uivar sinistramente e pela casa espalhava-se um cheiro intenso, um fumo suffocante d'ervas, que a irmã queimava por conselho d'uma bruxa, entre rezas plangentes, arrastadas, de arrelia.

Pessimista bilioso, mal com a vida, fugira de parentes e de amigos, e ali vivia isolado, merencorio, cheio de azedumes, n'aquella rua onde os casebres em ruinas se alinhavam tristemente, com vidros esverdeados, telhados cheios de corcovas, paredes desaprumadas, com ervas crescendo junto aos muros em que as osgas aqueciam ao sol os dorsos escamosos.

E dava-me bem n'aquella paizagem cuja musica harmonisava com as minhas queixas, n'aquelle scenario que havia procurado e emfim descobrira, onde arrastava as minhas preocupações, os meus desvarios, na prisão voluntaria que escolhera e me era cara á força de melancolica, que eu amava porque me era hostil.

Ao meu odio pela gente e pelas coisas, uma só coisa escapára – aquella carruagem a desconjuntar-se, pyrilampo nas trevas da minha noite, nota suavissima no concerto da minh'alma.

Tão egual era sempre a dôr que me atormentava, tão parecidos rodavam meus dias, que o verão passou, sem que, olhando para traz, eu pudesse ver na estrada, que andei triste, o marco d'uma alegria, d'um aspecto novo, d'uma miragem na vida.

Aquelle amor, aquella quasi paixão, que ao principio as velhinhas me haviam inspirado, esse mesmo sentimento purissimo affligia-me agora, á medida que o sentia crescer.

O tempo fôra passando, e os cavallos cada vez choutavam menos, coxeavam mais, mais brancos, mais tisicos, mais dolorosamente meditabundos; o cocheiro mais corcovado, um pouco descahido na almofada, deixava pender o chicote; a carruagem tinha na frente umas tiras de papel sobre um vidro rachado; cordas, a que todos os dias se juntava um nó, ligavam os arreios; as velhinhas tinham menos palhetas doiradas no olhar, quando me sorriam. E já me sorriam como a pessoa conhecida, que occupasse na vida d'ellas o logar em que moravam na minha, o que augmentava a minha tristeza.

Agora, cada vez que lá no alto da calçada se afundava a carruagem, ficava scismando se teriam desapparecido de uma vez todos os meus sonhos, tudo – que era sómente aquillo – quanto á vida me prendia.

O verão, muito lentamente, assim foi rodando, até que vieram as primeiras chuvas.

Que tarde turbida e melancolica! Se não viessem…! E de tanto pensar n'ellas, vi qual era sua pousada na minh'alma. Se não viessem…! Dia immenso em que, cheio de inquietações passeei pelo quarto até entontecer, approximando-me da janella a cada instante, vendo apenas na solidão da calçada a chuva a cahir, a cahir, rio enorme, que se despenhava até lá abaixo, rolando barrento, cheio de espuma, quebrando-se, saltando sobre as pedras arrancadas, bi-partindo-se lá no fundo, desapparecendo na curva e galgando as escadinhas, onde se precipitava em cascata, com uma bulha monotona…

O doido, a quem a meia escuridão d'aquelle dia exacerbára a furia, torcia-se, berrava como um possesso; e logo de manhã espalhou-se pela casa o tal cheiro que eu detestava, de alfazema queimada, de alecrim e d'outras ervas com que o demonio embirra.

Dia immenso, que me parecia não dever acabar!

Na minha imaginação exaltada via, como de então para cá vi sempre, um ente unico n'aquella carruagem, com as donas, os cavallos, o cocheiro, como se uma só alma os animasse a todos, não podendo desligal-os, abstrahir d'uns para só pensar nos outros.

O dia vinha descendo e, ancioso, sentindo pelo ser fantastico que me fazia pulsar o coração, aquelle fervoroso amor, que os encarcerados dedicam ás vezes a uma formiga, a uma aranha, a uma plantasinha qualquer, com as unhas cravadas na carne do peito, tive uma das mais doidas alegrias da vida, quando senti sobre a lama que se alastrava de lado a lado, o rodar lento, abafado, por que suspirava semi-doido.

Os cavallos gemiam, suavam, lançando pelas ventas baforadas densas. As sob-rodas, occultas pela lama e que o cocheiro não evitava, cego pela chuva que o zurzia, faziam cambalear o trem como um ebrio. E lá dentro mal pude avistar, atravez dos vidros embaciados, as velhinhas que sorriam.

Abri a janella para as ver desapparecer. Julguei que nunca chegassem ao alto. O cocheiro com um gesto afflicto brandia o chicote; os cavallos pegavam-se, ajoelhavam na lama; as molas estalavam.

Chegaram finalmente. Disse-lhes um adeus maguado. E emquanto a noite descia, sentado junto da janella, parecia-me ver, como n'um sonho, a carruagem fugindo, fugindo, por uma estrada que não acabava nunca, levando no tejadilho, de pé, como os anjos dos coches de enterro, a figura da morte. E a chuva cahia, cahia, e a noite embrulhava-se n'um véo muito negro, cheia de frio.

***

Nunca mais as vi.

Passaram-se mezes. Na terça feira de entrudo uns mascarados bebados, que desciam pela calçada, traziam adiante aos pontapés, em grande troça, um chapéo de furta-côres, pequeno, de abas largas, arrombado, sem pêllo, com um velho galão todo oxidado, velho, muito velho…

Boas e santas velhinhas!

Requiem æternam dona eis, Domine, et lux perpetua luceat eis.

AS ESTRELLAS DO CEGO

Noite de Natal.

Terminára a missa. Repicavam sinos e o povo descia alegre os degráos em ruina da larga escadaria.

A noite era cheia de estrellas, luzes d'altar immenso sob o immenso docel de velludo azul. O céo muito frio parecia rir-se, a piscar os olhinhos alegres.

Ainda nos eccos da alta abobada em berço resoavam os ultimos cheios do orgam do convento. Pela porta aberta de par em par, onde a multidão se acotovelava á sahida, vinha de dentro da egreja um perfume religioso de flores, de fumo de incenso, de cera queimada.

O altar reluzia ao fundo, e as luzes inquietas enchiam de zig-zagues rutilos as lentejoulas e os fios de seda nos mantos bordados da Santa Familia e na colxa de damasco do berço pequenino, em que o Menino Jesus dôrmia.

Tocavam sinos, e os repiques, como foguetes, subiam pelo ar denso da noite fria, entre a algazarra do povo, massa escura caminhando pela noite escura. A larga frontaria da egreja, comida pelo tempo, abafada n'um velho tapete de musgo, sobresahia no céo em mancha muito negra, d'onde jorravam feixes luminosos, ondas de harmonias, luz e canticos de triumpho.

Um pequeno desceu a escada levando um cego pela mão.

Iam fechar-se as portas. Sahiam os ultimos devotos.

O cego era um velho corcovado, tremulo, com a face cheia de rugas crusadas, como um pedaço de papel amachucado. Os olhos sem luz voltava-os para o céo, meneando a cabeça constantemente, como se procurasse… o quê? E sorria. Dava a mão ao petizinho e descia os degraos tacteando-os com o pé.

– Ainda mais um, avô… E outro… E outro.

Fechou-se a egreja. O candeeiro da esquina mal alumiava o adro.

E o cego sorria e afagava a mão do pequeno.

O povo espalhou-se pela ruas. Eram como estilhaços de alegria por toda a cidade.

Vinha a gente descendo pelos beccos angulosos, pelas travessas em declive rapido. E parecia que todos levavam n'alma um pedaço de luz d'aquella noite em Belem cantada nos evangelhos, da alegria d'aquella musica ouvida no templo, quando os sinos repicaram e o côro entoou o Gloria in excelsis! Todos falavam, todos riam, muitos cantavam. Era a ceia prompta em casa, era o dia seguinte todo elle inteirinho de descanço!

Noite de Natal! Noite de Natal!

E eu fui por ali abaixo tambem, atraz do cego.

O pequenito teria oito annos. Loiro. D'olhos azues. Olhava para as estrellas a rirem lá em cima.

Os olhos tinham a côr do céo, e o que n'elles brilhava tanto podia ser o reflexo das estrellas como a luz placida da sua almasinha.

Caminhavam os dois por ali abaixo e conversavam. Á voz tremula do velho replicava compassadamente o pequenino. E o que elle dizia com a sua vozita infantil, linda como um trinado, devia de soar aos ouvidos do avô ainda como um cantico, como se um anjo d'aquelles, que haviam aos pastores annunciado a vinda do Senhor, houvesse ficado na terra; porque o cego continuava sorrindo, e, a descer pelos beccos escuros e tortuosos, afagando a mão do netinho, fitava os olhos condemnados ás trevas lá em cima, lá muito em cima, d'onde vinha aquella luz toda, que alegrava os olhos da criança.

Conversavam os dois contentes. Eu ouvia bocadinhos do que diziam, palavras soltas, por onde, mais ou menos, reconstituia a conversação.

Esperava-os em casa a mãe do pequeno, filha do cego. Os dois levavam fome. A mulher ficara em casa fazendo a ceia. E ao velho ouvi dizer, uma ou duas vezes, gulosamente:

– A canja.

E o pequeno:

– Degráo, avôsinho.

E o cego, muito attento, vagarosamente, tacteava o degráo com o pé, afagando a mão do neto, cantarolando.

Pelos beccos, pelas travessas, sob os arcos dos pateos irregulares, cheios de sombras, disseminara-se a gente. Iamos agora sós, nós trez, n'aquelle caminho.

Ouviam-se ainda passos ao longe, eccos de vozes, uma ou outra guitarra em lojas fechadas, onde brilhavam as frinchas das portas; de quando em quando, um bater de palmas ao guarda nocturno, passos correndo, um tinir de chaves. Um gallo cantou n'uma trapeira.

– É tarde, disse o velho.

Caminhavam mais depressa agora.

E eu ia andando atraz d'elles, sem saber bem porquê, atrahido talvez pela doçura do quadro, pelo encanto do grupo, pela meiguice das vozes, por ver tanta alegria onde tanta miseria se cuidava, tanta paz nas almas, onde tanta dôr devia de suppôr-se.

Passei-lhes adeante. Esperei junto de um candeeiro. Queria ver-lhes ainda uma vez os rostos.

O cego continuava a olhar para o céo, meneando a cabeça. O pequenito ao lado, agora que na rua tinham acabado os tropeços, olhava para onde olhava o cego.

A cabelleira loira, toda em anneis, não lhe cabia dentro do chapéo e cahia-lhe, revolta, pela testa, ao longo das faces, pelas costas.

Era lindo, lindo! E o cego, que o não via, continuava a sorrir!

Deixei-os passar adeante.

A rua alargava-se entre casarias irregulares. Caminhavam mais á vontade agora, mas tinham-se calado. Culpa talvez da minha indiscrição.

Faziam ecco no silencio da noite os nossos passos sobre a calçada, na rua deserta.

Pararam. O velho bateu cinco argoladas á porta de uma casa esguia, com grades de madeira nas janellas cheias de vasos. Passados poucos segundos, ouviu-se a pancada violenta do trinco puxado com força desde lá de cima.

O cego e o pequeno desappareceram na escuridão da escada. A porta bateu com estrondo.

Ouvi ainda o velho cantarolando, emquanto subia. Pouco a pouco a voz sumiu-se. Encostei o ouvido á fechadura: uma bulha de passos apagando-se, mais e mais, a cada volta da escada; uma voz muito alegre – devia de ser a da mãe do pequeno recebendo-os – palavras que não percebi… E fechou-se lá em cima uma porta.

***

Então passei para o outro lado da rua e fiquei-me a olhar para aquella casa.

Era noite de Natal, noite de festa, noite cantada pelos poetas. Talvez as cordas da minh'alma vibrassem ainda em unisono com os cantos d'aquellas vozes tão devotas, singelamente entoados por detraz das grades do côro, hymnos muito simples ao Deus Menino nascido.

No céo de immaculada pureza as estrellas vibravam raios de luz intensissima. Fazia frio.

E eu quedava-me a olhar para aquella casa, tão pobresinha, tão velha, tão escura, tão cheia de flores d'alto a baixo!

Uma janella no telhado illuminou-se.

Começava a ceia do velho. Eu reconstituia o grupo dos trez: a mesa encostada á parede na trapeira muito baixa, o velho aspirando os perfumes da sopa, a terrina sobre a toalha muito branca, o pequeno defronte do avô, e a mulher a sorrir-lhes, ouvindo-lhes as historias, o throno, o presepio, a missa, o canto das freiras, a vinda por ali abaixo a horas mortas, a minha perseguição.

E o pae do pequeno? Ah! sim, esse tambem lá estava… Pois quem trabalha para sustentar a alegria n'aquellas almas?.. Santa familia!

Que deliciosa ceia! Que paz tranquilla! Que boa noite de Natal!

Tanto falava o cego na canja, rua fóra, pela mão do pequeno! Quem não tem olhos, tem melhor paladar.

E o pequeno como devora! É que é tarde e não costuma estar de véla áquellas horas! Comprida manhã terá na cama. Já os olhitos se lhe começam a fechar.

E o pae e a mãe a rirem, contentes de os verem assim!

Que boa noite de Natal!

Fitára os olhos na janella, não sabia d'ali apartal-os. Tambem eu agora olhava para cima, como ainda agora o pequeno para as estrellas, o cego não sei para onde.

Porque olhava o cego para o céo?

Tornou o gallo a cantar. Ouvi-o, ao longe, mais alegre, como quem já adivinha a madrugada.

Ha quanto tempo estava eu ali? Porque olhava para aquella trapeira?

Encaminhei-me vagarosamente para casa.

Havia tantas estrellas no céo! Como era linda a noite de Natal! Como tinha razão o pequenito dos cabellos loiros de olhar para as estrellas! Que quantidade de luz! Tantas! Tantas!.. Talvez o pequeno se lhe mettesse em cabeça de contal-as! Houve uma, quando vinhamos pela travessa abaixo, que passou correndo, deixando um rastro muito longo… Era como a estrella dos Reis Magos. Que luz não tinham os olhos do pequenito! E o cego sorrindo ao pé d'elle, com os olhos tenebrosos postos no céo! Porque? É que se lhe voltavam para lá os olhos d'alma, é que na alma tinha elle mais luz do que o pequeno nos olhos.

E vejo-os ainda a descerem pelos beccos, o velho meneando a cabeça, o pequenito a dar-lhe a mão? Degráo, avôsinho? ambos com os olhos no céo, a estrella a correr…

Que lindas estrellas vê o cego!

Возрастное ограничение:
12+
Дата выхода на Литрес:
25 июня 2017
Объем:
100 стр. 1 иллюстрация
Правообладатель:
Public Domain

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