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A OUTRA

Era em fins d'agosto, á hora do meio dia.

Havia um instante, que, na torre pequenina da egreja, o sacristão, com a cabeça abrigada do sol por um grande lenço de fundo vermelho com ramagens amarellas, tinha feito soar vagarosamente as ave-marias.

Hora do descanço. Alguns dos que trabalhavam mais perto recolheram a casa para jantar e socegar um pedaço, durante a sesta.

Depois tudo pareceu adormecer na aldeia. Junto aos muros, enfileiradas todas na nesgasinha de sombra, as gallinhas dormitavam; os passaros nos salgueiraes, que sombreavam o ribeiro, tinham emmudecido. No interior das casas nenhum rumor, por entre a folhagem nenhuma viração. Até as carroças, nos pateos, com os varaes aprumados, pareciam, como n'um espreguiçamento, dispôr-se para o somno.

O sol quasi a prumo dardejava sobre a aldeia os raios quentissimos, reverberados pelas paredes caiadas de fresco e pelos telhados novos vidrados, que pareciam em braza, e atravessava com elles as ramarias, enchendo o ribeiro de manchas movediças, multiformes, cheias de scintilações, como pedacinhos de metal.

Era aquella a hora a que d'antes costumava recolher a casa o José Miguel, o melhor caçador da aldeia, com a rede quasi a trasbordar, tão cheia a trazia sempre de perdigotos e laparos.

Ainda elle vinha longe, já se ouviam os latidos alegres do cão, correndo na frente.

Então a mulher, depois de haver posto a mesa, vinha para o limiar da porta, encostava-se á hombreira, e punha-se á espera, toda risonha, feliz, fresquinha como uma flôr, com o seu vestido de linho muito engommado.

Os que passavam iam-lhe dando as boas tardes.

– Não tarda ahi, diziam-lhe cumprimentando-a. E é como sempre: bolsa cheia e cartuxeira vasia.

***

Tempos!.. Tempos!

Havia quasi um mez que a pobre Marianna debalde esperava o marido áquella hora.

Agora, quando ouvia soar as ave-marias, vinha encostar a testa aos vidros da janella e, com as faces incendiadas, o ouvido attento, fitando os olhos numa casa que alvejava ao longe sobre a serra, deixava correr em fio as lagrimas silenciosas.

E os que passavam, recolhendo ás casas, olhavam para ella com um modo tão triste, que ainda mais a entristecia, e iam dizendo uns para os outros: – Coitadinha!

***

O que lhe custava…! E quanto mais, ao recordar-se do outro verão que passára!

Para aquillo tinha casado, para mal decorrido um anno, um anno pouco mais, ali se vêr sósinha, chorando o marido que lhe fugira!

Porque assim fôra rebelde aos conselhos do pae? Bem lh'o tinha elle prégado no proprio dia em que dera por aquelles amores!

O pobre mestre-escola, ouvindo-a conversar uma noite, á porta da rua, viera buscal-a por um braço, arrastára-a pela escada até ao quarto lá em cima, e ali, meneando a cabeça, de braços cruzados, lançando chispas pelos olhos, dissera-lhe apenas: – Senhora!

E ella começara a chorar e logo elle, ternissimo e afflicto, a enchera de beijos.

Ainda não pensára n'aquillo…! Pois tão nova ainda, havia de assim deixal-o? E então por quem? Pelo José Miguel, um valdevinos, um doido, um conquistador!

Recordára-lhe a morte da mãe que a deixára com trez annos entregue a elle, o que elle soffrera, os cuidados de que a rodeara, a educação que lhe dera.

Era á noite, noite muito serena, cheia de murmurios misteriosos, que se elevavam dos campos n'uma grande serenidade. Ouvia-se ao longe a queda das aguas do ribeiro e o rodar das azenhas. A janella estava aberta e lá de fóra vinham perfumes quentes, fortes, no bafo carinhoso da primavera.

Junto da porta crescia uma roseira, que mettêra para dentro do quarto uma pernada insubmissa, toda cheia de cachos de rosas pequeninas. Um rouxinol cantava no salgueiral, porque isto era no tempo dos ninhos.

O mestre-escola approximou-se da janella e esteve por algum tempo respirando aquelle ar que o refrescava agora, mas que lhe trouxe não sei que recordações.

Olhou para a filha e viu-a crescida, com os peitos desenvolvidos, o pescoço muito bem torneado, o cabello farto, enrolado no alto em duas tranças; viu-lhe a carnadura branca, sadia e forte.

O rouxinol continuava a cantar e a pernada cheia de flores teve um movimento languido, vergando a um suspiro da noite.

O mestre-escola tomou uma respiração funda e fez um movimento d'hombros resignado.

– É preciso casar-te, não ha remedio.

Como por miudos se lembrava de toda a scena que tivera com o pae e dos conselhos que então lhe ouvira! Bem o previra elle que o José Miguel a havia de abandonar um dia, não porque fosse mau, mas porque era leviano, que havia de deixar a mulher como deixava agora as namoradas, que tinham sido, uma apoz outra, todas as raparigas da aldeia.

Que mal empregadas lagrimas ella chorára, até que afinal o pae consentira no casamento!

Quantas vezes, feitas as pazes, tinham os trez commentado aquella historia!

***

Um dia o mestre-escola fôra pelo Prior e outros convidado para uma caçada a que iria tambem o José Miguel.

Foi este quem, bastante atrapalhado, veio pela manhã bater-lhe á porta.

– Prompto, sr. Eustachio? Olhe que o Prior, ha mais de um quarto d'hora que está á sua espera no adro!

– Lá vou! lá vou! gritou de dentro o Eustachio.

E appareceu pouco depois, com a sua bota alta branca e o bonnet de pala verde, que usava havia dez annos.

– Adeus! disse ao José Miguel com máu modo.

– Sr. Eustachio…! respondeu este, cumprimentando-o, entre ironico e atarantado.

E, erguendo os olhos, entreviu na unica janella do primeiro andar, detraz das folhas da roseira, uma carinha muito bonita, mas muito triste, que lhe sorria por entre muitas lagrimas.

– Vamos! disse o Eustachio, pondo-se a caminho e olhando de revez para o outro.

– Deixa estar, grande patife! ia pensando o José Miguel. Ainda hoje m'as has de pagar!

Chegaram ao adro, onde o Prior e mais dois amigos os esperavam com impaciencia.

Depois de muitas recriminações e descomposturas, a que o Eustachio respondeu com desculpas gaguejadas, começaram ali mesmo a caçada, porque a egreja era no fim da aldeia e no sopé d'um cabeço predilecto das perdizes.

Vinte minutos depois, o cão do mestre-escola parava, e este, com o dedo no gatilho, esperava que as perdizes levantassem.

– Entra, cão!

Ouviram-se dois tiros; mas as perdizes foram-se voando com saude. O velho caçador fez um movimento de máu genio.

Então o José Miguel, collocado um pouco mais longe, apontou serenamente, descarregou por duas vezes a espingarda, e as perdizes, depois de por um instante haverem batido convulsamente as azas, inclinaram as cabeças e deixaram-se cahir a prumo, como coisas inertes.

– Que é lá isso? perguntou o Eustachio.

– O sr. não vê? disse-lhe o José Miguel, mostrando-lhe a caça morta. São duas perdizes.

E depois baixinho para o Prior, mas não tão baixo que o Eustachio o não ouvisse:

– E dois bigodes. Elle que os vá contando.

E contou-os, e não foram poucos.

Felizmente o Eustachio não era de reservas. O rapaz enthusiasmou-o.

– Bravo! dizia elle ao fim da tarde, com o olhito a luzir, o que era tambem d'umas beijocas a mais na borracha do Prior.

E depois, muito amigavelmente, pondo-lhe a mão no hombro:

– Sabes que tens quasi uma riqueza n'essa espingarda?

***

Com que saudades a Marianna recordava esse momento em que, pela primeira vez, ouvira da bocca do pae um elogio ao namorado!

– Mas isto não obsta. Não quero! teimava ainda o Eustachio. Aquillo é um cabeça no ar. Um dia deixa-te e ficas peor do que viuva!

Afinal consentira. Que lhe havia de fazer?

O José Miguel acirrára-se com aquella resistencia e, em vez de abandonar a rapariga, como fizéra ás outras, cada vez se mostrava mais assiduo junto da filha do mestre-escola. A Marianna definhava-se, que era um dó vel-a.

O Eustachio, bem contra vontade, não teve outro remedio, consentiu.

***

O bom tempo tem azas.

Com os olhos fitos na casa pequenina, que alvejava no alto da serra, a triste chorava amargamente, lembrando-se d'aquelles primeiros mezes de casada e das alegrias que tinha, quando ouvia ao longe os latidos do Valente, que voltava da caça.

Logo tirava da arca a toalha de linho muito alva, riscada pelo ferro; puxava a mesa para defronte da janella, que uma parreira sombreava; dispunha-a com muito cuidado, o logar d'ella e o d'elle, um defronte do outro, o cangirão cheio de vinho, o pão alvo partido em quartos, os pratos de fructa, que perfumavam a casa.

Então o Valente entrava muito bruto, saltando, muito desordeiro, querendo que lhe abrissem a porta do pateo, para onde logo sahia a correr, enterrando o focinho na panella cheia de caldo e de grandes bocados de pão de munição.

O José Miguel muito estafado, atirava para cima da arca a bolsa de caça, sorria ao ver aquelles arranjos e, enchendo a caneca do vinho muito fresco, bebia-o depois, de uma vez, d'olhos continuando a sorrir, soltando ao acabar um bello ah! de satisfação.

– Vamos a isto mulher, vamos a isto! dizia approximando da mesa a grande cadeira de páu santo.

E, todo olhares gulosos, muito sorridente, de beiços estendidos, destapava a terrina e enterrava a concha nas sopas.

Emquanto ia comendo, vinham as historias do dia.

Ella pouco podia adeantar: estivera em casa trabalhando, não sabia nada de novo.

Elle então contava façanhas do Valente, que, saciada a fome, muito sujo, muito lambusado, sentado a um canto, d'olhos meio-cerrados, esperava com paciencia o fim do jantar e a codea de queijo da sobremesa.

Estava muito velho, coitado do bicho! mas ainda nenhum lhe chegava.

Depois queixava-se da caça. As perdizes por aquelle calor andavam levadas da breca! O que elle andára por aquelles mattos!

A mulher, sentada defronte d'elle, ria muito contente, mostrando-lhe os dentes muito brancos entre os labios vermelhos, com duas covinhas aos cantos.

Pois as perdizes andavam assim como elle dizia, e estava a rede ali tão cheia!

– Mas vê lá se outro consegue o mesmo, dizia o José Miguel todo orgulhoso. É que d'aquillo e d'estas não ha outro que as tenha na aldeia.

E apontava para a espingarda e batia nas barrigas das pernas.

– São de ferro!

O mestre-escola vinha muita vez, depois do jantar, ter com elles á sobremesa, beber um copo de vinho e depenicar no queijo.

Caçador velho, muito conhecedor d'aquelles terrenos, gostava de dar conselhos ao genro, que o escutava attencioso.

Isto não obstava a que, sahindo juntos, o José Miguel, fizesse enfurecer o sogro, matando-lhe a caça que este errava.

– Ora anda lá, meu velho, resmungava muito alegre, apanha lá mais este, para a conta.

***

Agora o José Miguel continuava a sahir todas as manhãs, mas só recolhia alta noite. Ás vezes, nem recolhia, e ella, coitadita, levava as noites a chorar.

Quando o marido sahia, punha-se á janella e via-o desapparecer por detraz da egreja, onde o sol nascente batia de chapa. Passados minutos, avistava-lhe o vulto, ao longe, na calva do pinhal. O Valente seguia-o cabisbaixo, triste, desconfiado, como que a extranhar o dono. Desappareciam depois entre os pinheiros e ella já não podia cá debaixo tornar a avistal-os. Mas da chaminé da casa, que alvejava no alto, começava a elevar-se no ar muito sereno da manhã um penachinho de fumo azulado, que logo se desfazia no azul do céu.

Ella então deitava-se de bruços na cama, e chorava convulsamente.

***

N'esse dia pela uma hora, o Eustachio entrou em casa da filha.

– O teu homem?

– Foi para a caça, respondeu a Marianna, sentando-se no leito e á pressa limpando as lagrimas.

O mestre-escola trazia o bonnet de palla verde, a espingarda a tiracolo, o polvarinho e o chumbo. Não trazia a rede.

– Bem. Deixa-te estar. Escusas de te incommodar. Deita-te, filha, que eu vou procural-o.

A Marianna quiz retel-o, extranhando-lhe os modos.

– Talvez o não encontre. Sabe Deus onde elle pára!

– Sabe-o Deus, sei-o eu e sabe-o a aldeia em peso, que é uma vergonha! respondeu o Eustachio, apontando com a espingarda para o alto do pinhal. Olha, sabes o que vou fazer?

– Ó meu pae!.. disse a rapariga, levantando-se do leito e vindo segurar-lhe os braços.

– Deixa-me! Muito tenho eu esperado! Não teem mais que o castigo que ambos merecem. Tu sabes quem ella é?

A Marianna disse que não com a cabeça.

Mas não havia de saber!..

– A Maria da Escusa, aquella cigana, que, não contente com ter dado cabo do marido, morto de desgostos, quer fazer outro tanto ao teu homem… e a ti! Mas eu vou lá e mato-a, mato-a como quem mata uma loba!

E, apertando, nervoso, a espingarda contra o peito, saiu arrebatadamente.

A Marianna, cheia de susto, sem forças para seguir o pae, sem forças para gritar, deixou-se cahir no leito, desmaiada quasi, sem animo para pensar na desgraça, que lhe estava acontecendo.

***

Assim esteve por muito tempo. Despertaram a afinal uns latidos alegres, tão conhecidos d'ella. Sentou-se no leito. Os latidos approximaram-se, e por fim o Valente rompeu pelo quarto, saltando, cheio de fome, pedindo o jantar, a arranhar na porta do pateo.

Ouviu então a voz do José Miguel. Vinha conversando com o pae e o que diziam não era coisa triste, porque ambos riam ás gargalhadas.

A Marianna correu, muito chorosa, até á porta, e, muito excitada, cahiu soluçando nos braços do marido.

– O que é isso? o que é isso? perguntava o Eustachio, tambem com um nósito na garganta. Choras então, porque eu te trouxe o homem? Se adivinhasse o disparate, tinha o deixado lá ficar.

– Então, mulher, então? Que tens tu? dizia o José Miguel muito commovido.

***

Passada meia hora, arranjado o jantar á pressa, sentaram-se todos á mesa.

A curiosidade, que nem um dito, uma allusão deram motivo para saciar, sorria nos olhos vivos da Marianna.

Que se haveria passado?

Mas, quasi ao fim do jantar, o mestre-escola, que estava conversando muito animadamente, enganou-se e, querendo beber á saude da filha, pegou no copo d'agua; o José Miguel, muito lampeiro, antes que o sogro désse pela distracção, lançou-lhe mão ao vinho e bebeu-o de um trago.

– Não é só na caça que se apanham bigodes sr. Eustachio.

– Não, não, respondeu o velho. E tu que o sabes d'hoje…!

O José Miguel fez-se muito vermelho, e, porque percebesse na mulher um sorriso em que a malicia apagára a tristeza, levantou-se da mesa e veio beijal-a muito.

– Coitada da Marianna!

– Então ella… enganou-te?

– Porque falas n'isso? Que te importa? Que me importa?

A curiosidade da Marianna ainda não estava satisfeita.

– Com quem?.. Dize… Dize… Com quem?

Então o mestre-escola, muito córado – era talvez da pinga? entendeu dever deixal-os sós, e sahiu a rir, com um arsinho trocista, muito contente, a esfregar as mãos.

O PAQUETE

Era no fim da azinhaga – uma azinhaga estragada pelas chuvas do inverno e tendo ainda marcada na lama secca a passagem do ultimo carro de bois. D'um lado e d'outro velhas piteiras misturavam a côr verde claro das largas folhas carnosas com o verde escuro, quasi negro, das silvas e pilriteiros; de espaço a espaço erguiam-se algum sobreiro decrepito, faias brancas e prateadas, loureiros embalsamando o ar com o cheiro forte e bom das longas folhas agudas.

No fim erguia-se a casa com o seu aspecto senhoril.

A hera apoderára-se do exterior e, aproveitando as fendas que o tempo abrira, espreguiçando-se sobre o leito do velho musgo amarello que revestia cada pedra da parede, ia unir as suas folhas delicadas aos cachos de arroz que desciam em elegantes pyramides das beiras do telhado.

Uma pequena escada, seis ou sete degraus gastos, abalados, partidos, conduzia do pateo ao vestibulo do palacio.

Sobre o portão, cuja tinta gretada pelo sol caíra pouco a pouco, ostentava-se, comido pelo tempo, o brasão da familia, sobre o qual ameaçava ruina uma grande coroa de conde transformada em coito de lagartixas.

Os vidros ennegrecidos e apenas translucidos tremiam de velhice nos caixilhos de chumbo.

Pelo pateo, nos intersticios das pedras, crescia livremente a erva, e a um canto um rallo juntava as estridulas melodias ao monotono coaxar das rãs do pantano visinho.

O Conde estava na livraria sentado n'uma velha poltrona de coiro com pregos de metal. Tinha na mão um livro latino, que lia attentamente.

A livraria era uma vasta sala alumiada por trez janellas de grande vão.

Avistava-se ao longe a aldeia com seu campanario branco, suas casinhas bem caiadas, e os cimos dos choupos erguendo-se acima dos telhados e indicando a estrada que a atravessava conduzindo d'uma villa a outra.

Entre as janellas e as portas estavam as estantes com os grandes in-folios amarellos, os grossos diccionarios e as obras classicas latinas, portuguezas e francezas.

A parede fronteira ás janellas, por cima da chaminé de marmore branco, era occupada pelo retrato do avô do Conde. Era um homem alto, bem feito, sympathico. Estava vestido á epocha de D. João V. Tinha uma das mãos nos copos da espada, as suas commendas ao peito e uma sombra exquisita, forte, brutal, na metade do nariz do lado esquerdo. A moldura deixára caír o doirado e estava rendilhada pelo caruncho. A um canto uma aranha tecêra a teia e esperava pela presa, escondida n'um rasgão da tela.

O sol descia e o Conde, para lhe aproveitar os últimos raios, puchára a cadeira para o vão da janella e, com o livro sobre o joelho, o cotovello sobre a perna traçada e a testa encostada á mão, lia attentamente uma passagem de Suetonio.

O crepusculo foi invadindo a sala. O sol, depois de ter com o ultimo raio brincado um instante na testa veneranda do avô commendador, desceu para detraz do cabeço, e as grandes sombras dos montes fundiram-se pouco a pouco n'uma tinta geral.

O Conde fechou o livro sobre o index e poz-se a contemplar a aldeia.

O vento do norte entrando pelas fendas das paredes sibillava tristemente no corredor, os vidros zuniam nos caixilhos de chumbo, as aves nocturnas, que habitavam as vastas chaminés do palacio, começavam a piar e aos ouvidos do Conde chegava a alegria da aldeia como nota extranha d'uma lingua esquecida.

Meiados de novembro, as noites eram frias.

O Conde olhou tristemente para as janellas das casas dos lavradores alegremente illuminadas pelo fogo vivo das lareiras, e, estremecendo de frio dentro da velha sobrecasaca parda, levantou-se, tocou uma campainha e, mettendo as mãos nas algibeiras, começou passeando pela sala.

Era um velho alquebrado e quasi completamente calvo; apenas duas ou trez madeixas de cabello branco e comprido desciam-lhe da nuca até á golla do casaco. Usava a barba toda; era curta e branca. Os olhos, cuja luz a edade ia apagando, eram da côr mal definida que teem os olhos dos velhos e os das creanças de mama: tinham comtudo uma expressão doce e melancholica. Ao canto da bocca uma prega vertical, desdenhosa e altiva quando o Conde estava serio, dava-lhe uma expressão de sympathica tristeza quando sorria.

Ao toque da campainha accudiu um criado.

Era um velho tambem, mais velho do que o Conde talvez. Trazia vestida uma casaca por certo verde, de tão velha que era, se não lhe occultassem o estofo accumuladas passagens de linha preta.

Entrou curvado um pouco pelo respeito, outro tanto pelos annos.

– José, disse o Conde, vae arrancar mais uma taboa á sala do docel a arranja o lume.

– Sr. Conde, eu sósinho não tenho forças.

– Chama o caseiro, como tens feito nos outros dias.

– O Manuel foi-se hoje embora, sr. Conde.

– Foi-se hoje embora! Porque?

– Foi trabalhar para a quinta do João Pereira. V. Ex.ª bem sabe que o homem, coitado, tem familia que sustentar e como os ordenados andam atrazaditos…

– Effectivamente, recordo-me de que ha já bastante tempo… Ora, coitado! Mas, porque não me disse elle?.. Eu esqueço-me de tudo. Has de dar-lhe dois pintos da minha parte. Eu te ajudo hoje a arrancar a taboa.

E saíndo ambos, foram a um quarto proximo e arrancaram uma taboa do soalho. O José serrou-a n'umas poucas de partes, feriu lume n'uma pederneira, porque o Conde reprovava os fosforos como perigosos, e, pouco depois, uma chamma viva e alegre trepava pela chaminé.

O Conde tornou a abrir o livro e continuou a ler Suetonio á luz de um bocado do seu palacio.

Tinham-se ido as taboas pouco a pouco e já quasi não restavam senão trez quartos completos, o do Conde, o do José e a livraria. Taboas, vigas, portas e janellas tinham-se desfeito em cinzas.

E os velhos lavradores da aldeia, ao verem o fumo erguer-se acima da chaminé do palacio, sorriam tristemente e diziam:

– Coitado!

Mas o Conde continuava alegre e indifferente. Como até ali nada lhe faltára, Deus sabe á custa de quantos sacrificios do pobre criado, não pensava no estado de miseria a que se achava reduzido ou, para melhor dizer, não queria pensar.

Quando ao domingo voltava da missa, vinha conversando alegremente, com um certo ar entre familiar e protector, com os lavradores que o estimavam e gostavam de ouvil-o. Entrava nas choupanas mais pobres, e afflicto com a miseria que n'ellas encontrava, dizia baixinho para o velho José, que o acompanhava sempre, com o grande missal romano debaixo do braço:

– José, deixa um pinto em cima da mesa para esta pobre gente festejar o domingo.

E saía tocando ao de leve com os dedos nas faces rosadas das criancinhas, que olhavam para elle com os seus meigos olhos grandes, cheios de espanto e de curiosidade.

O José demorava-se como que para obedecer ao fidalgo e saia momentos depois, levando nas vastas algibeiras da casaca os bocados de pão negro e de carne, com os quaes e com a ajuda de mais uma taboa o Conde havia de jantar n'aquelle dia.

E o Conde continuava alegre e passava os dias conversando, como elle dizia, com os seus auctores favoritos e entretendo a imaginação com os sonhos doirados d'um futuro melhor.

Tinha um filho.

Havia trez annos que o seu genio desleixado o obrigára a partir para o Brazil, na esperança de, á força de trabalho, reparar os desastres da fortuna.

E não fôra a ambição que o levára tão longe. Não ignorava elle a maneira como se sustentava o Conde e o seu genio altivo custava-lhe sujeitar-se á compassiva esmola dos aldeãos.

Um dia, deu parte de suas tenções ao pae, mostrando-lhe a conveniencia d'aquella partida, occultando-lhe porém uma grande parte da verdade com receio que a revelação d'ella fosse um golpe fatal na vida do velho. Repellida primeiramente a ideia como absurda e pouco digna, o pobre pae, com o coração esmigalhado pela dôr e pela vergonha, teve por fim que render-se e sacrificar o seu orgulho ao orgulho mais nobre do filho.

Obtida a licença, partiu levando como capital a benção paterna e os poucos pintos que rendeu mais uma hypotheca.

***

Os primeiros dias foram horriveis para o Conde. Sentia um vacuo enorme n'aquella casa, havia pouco tão cheia ainda. Depois a dôr foi abrandando pouco a pouco, e o Conde voltou aos habitos antigos. Tinha mais um sentimento no coração: a esperança.

***

Uma tarde chegou uma carta que dizia:

«Meu caro pae, vou bem, vou muito bem. Pelo proximo paquete espero poder enviar-lhe cem mil réis, quantia que continuarei a mandar todos os mezes.»

O Conde procurou paquete no diccionario de Moraes, mas achou a palavra comida pela traça.

O José chorava de alegria e n'aquella noite deitou duas taboas no lume, acceitou um copo de vinho ao João Pereira, e, quando acabou o terço, disse para o Conde, com quem o resára em voz alta:

– Para que se realise o que sr. D. Carlos nos promette: Salve, Rainha.

***

E passou-se mez e meio e o Conde dizia:

– O que será paquete?

De Agostinho de Macedo para cá não sabia nada, não lia jornaes, nem vêl-os queria. Detestava-os com um odio de velho, quasi instinctivo. Quando via algum jornal murmurava logo!

– Maçonaria!

E continuava a esperar o paquete, como um sebastianista espera D. Sebastião, com uma confiança cheia de misterios e de pequenas impaciencias.

O palacio já pouco mais tinha do que as paredes. Pouco a pouco, taboa, por taboa, viga por viga, o quarto do criado passára pela chaminé e este dormia agora na camara do Conde.

E o velho fidalgo dizia ao ver crepitar na vasta lareira as taboas carcomidas:

– Paciencia! Isto concerta-se depois, quando chegar o paquete.

E o José apenas respondia:

– Salve, Rainha.

Estava-se no principio de janeiro.

O Conde começou a separar os livros em duas classes: a dos livros uteis e a dos livros inuteis.

Os livros inuteis transformaram-se em calor, e, quando o Conde via as paginas amarelladas torcerem-se sob a acção do lume, olhava para ellas tristemente e depois, erguendo os olhos para o retrato do avô, dizia mentalmente, como que pedindo desculpa:

– São os peores.

Acabaram os livros inuteis e o Conde poz de lado os optimos e queimou os restantes.

Duraram dois dias.

E como o paquete não chegava, o Conde coçava a cabeça e olhava com um modo menos respeitoso para o missal romano.

O José triplicava o numero das salve-rainhas.

E o paquete não chegava, e os manuscriptos arderam, e o Conde queimou as gravuras e conservou apenas o Suetonio.

***

Passados dias chegou uma carta.

Trazia um sobrescripto azul, um pouco transparente, muito boa lettra, uma lettra com muitos finos e grossos, como a d'um professor de caligraphia. Trazia a marca do Brazil e cheirava a carvão de pedra.

Foi o José quem a recebeu, e correndo para a livraria, onde o Conde estendia instinctivamente as mãos tremulas sobre as cinzas frias da chaminé, entrou gritando:

– O paquete! o paquete!

O Conde estremeceu, ergueu-se e pegou na carta.

Era talvez a riqueza!

Passou-lhe uma nuvem pelos olhos.

Encostou-se a uma poltrona e, tremendo, abrio o sobrescripto.

E leu:

«Temos o doloroso dever de dar parte a V. Ex.ª do fallecimento do seu filho…»

O Conde não poude ler mais e deixou cair a carta.

José exclamava:

– Perdidos! Perdidos!

E dava com a cabeça nas paredes.

O Conde conservava-se silencioso e fitava os olhos turvos na folha de papel azul, que tremulava no chão assoprada pelo vento.

– Resta-nos a caridade, José, disse porfim. Vae, vae ter com essa gente a quem hontem ainda eu dei esmolla, e dize-lhe que o Conde lhe pede, por amor de Deus, um bocado de pão.

E depois soluçando:

– Manuel! Filho!.. Meu querido filho! E como fazia muito frio, o Conde queimou o Suetonio.

Возрастное ограничение:
12+
Дата выхода на Литрес:
25 июня 2017
Объем:
100 стр. 1 иллюстрация
Правообладатель:
Public Domain

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