Читать книгу: «O Regicida», страница 10

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XX

Diogo Soares, previsto e diligentissimo em proporcionar aos assassinos enviados os meios de facil fugida, mandara uma chalupa do porto do Ferrol para os receber na barra de Lisboa; mas o portador, que por terra trouxera o aviso ao mercador Simão Serges, não o encontrando no dia 19 de junho, segundo as ordens que trazia, foi na noite de 20 a Passo d'Arcos fazer signal de erguerem ancora aos da chalupa. Simão Serges, áquella hora em que o buscavam, temeroso do resultado da tentativa, passara o Tejo, e esperava em Aldeia Gallega a noticia das occorrencias. O manuscripto, que nos esclarece as escuridades da historia, diz a tal respeito: «N'este tempo estava Roque da Cunha com os cavallos esperando-o ao Postigo da Graça, onde foi ter com elle Domingos Leite, e que lhe contou o que passára; e é de saber que na mesma tarde foi visto em Passo d'Arcos um barco longo de Castella, e que havendo descuido em ir a elle de noute, fugiu este, e desappareceu, e os dois foram por terra.»

Ao mesmo tempo, Bernardo, que passára a noite e o dia em oração, quando viu terminadas as festas do Triumpho, e nenhum caso extraordinario se contava em Lisboa, nem voz humana proferia o nome de seu amo, deu fervorosas graças ao Senhor, porque attendera ás suas preces.

O apparecimento de Roque e Domingos Leite em Madrid foi acolhido com frieza dos fidalgos portuguezes e dos ministros de Filippe IV. Diogo Soares, rindo da historia pueril da visão da menina que paralisára o braço do pai, disse que os covardes, antes de se affrontarem com emprezas grandes, deviam medir a sua altura pela das meninas que lhes podessem apparecer na hora da prova. Roque da Cunha transmittiu a phrase, qual a recebêra, a Domingos Leite.

O frustrado regicida volvêra-se á vida solitaria com a sua dôr exacerbada pela nota de covarde e digno marido da meretriz Traga-malhas. Quem mais lhe carregava a mão no peccado da mulher era D. Vicencia, filha da Barbara da rua dos Cabides. Insidiosamente lhe escreviam satyras celebrando-lhe a façanhosa jornada a Lisboa, e offerecendo-lhe outra commenda para se ir a Pariz matar Luiz XIV, e duas commendas para ir ao inferno matar o diabo.

Na correnteza d'estas coisas, fallecêra em Madrid um padre da companhia de Jesus, a quem D. João IV estipendiara grandiosamente na espionagem dos planos de guerra. Esta pêrda contrariava o rei, e mais ainda o impedimento de substituir sem dilação a sagacidade do jesuita, que sahira bem amestrado do gyneceu de padre Antonio Vieira.

Arrolando os portuguezes mais infamados que demoravam em Hespanha, D. João lembrou-se de Roque da Cunha. Conhecia-o pela falsa delação de Mathias de Albuquerque, e por homicidios que a obscuridade protegera, como o do pai de Miguel de Vasconcellos, divulgado em 1640, e indultado pela politica. E, bem que soubesse da sua parceria com Domingos Leite no assassinio do padre Luiz, intendêra o rei que o sicario, vendido ao marido de Maria Isabel, estava em almoeda para quem o quizesse comprar.

No proposito de chatinal-o, enviou Gaspar de Faria Severim a Madrid pessoa idonea, e conhecida de Roque da Cunha. Era quasi sempre um clerigo ou frade de inculcada virtude e erudição theologica, por parte das duas nações irreconciliaveis, o espia ou o cathequista d'essas personagens indispensaveis na diplomacia d'aquelles tempos, assim como o algoz era o artigo fundamental da arte de reinar. Apenas restaurado o reino, fôra fr. Diogo Seyner espião de Castella em Portugal, e tambem um padre Azevedo, que acabou envenenado em Angola. Em compensação, as denuncias mais importantes que vinham de Hespanha, quanto ás intenções de invasão, procediam da companhia de Jesus, pois que os Philippes, com quanto patricios do sancto fundador da ordem, nunca se avençaram politicamente com a theocracia da omnipotente roupêta. Ainda n'aquelle anno de 1647, a Hespanha festejava a perfida passagem do jesuita flamengo, o padre Cosmander, que vestiu as insignias de sargento-mór de batalha, depois de as ter já usado no exercito portuguez. Este sacerdote, que timbrava de engenheiro, viria outra vez ajudar os nossos a repellir os estrangeiros, se não morresse debaixo das baterias portuguezas; no entanto, emquanto viveu, deu de si boa conta, espiando as duas nações, visto que nenhuma era sua.

Com este se intendêra o padre portuguez, e ambos com Roque da Cunha.

A proposta era em termos de seduzir um aventureiro com dous terços menos da perversidade de Roque. D. João IV enviava-lhe o perdão do crime de homicidio na pessoa do padre Luiz, aproveitavel quando a sua continuação em Castella fosse desnecessaria, e elle quizesse voltar ao reino. Enviava-lhe como comêço de gratificação trez mil cruzados, e promessa de ao diante o ir premiando com dinheiro á medida dos seus serviços e habilidade nas pesquisas. Quanto ao futuro, quando Roque se repatriasse perdoado, despachal-o-hia em pingue emprego na caza da India e Mina.

Seduziram-no; jactavam-se os dois jesuitas de o terem seduzido; mas a verdade é que o infame não deu ansa a que os seductores provassem os dotes de corrupção: rendeu-se logo.

Dias depois, Roque da Cunha, ao despedir-se do agente portuguez, disse-lhe com mysterioso recato:

–Diga V. Reverencia a el-rei nosso Senhor que eu só entrarei em Portugal, quando lá fôr para o salvar da morte.

O padre não obteve illucidações d'estas vagas palavras.

Assim as revelou a D. João IV, que lhes deu a maxima ponderação, sem todavia suspeitar de qual dos fidalgos homisiados poderia proceder a tentativa, se dos Mascarenhas, se dos Lencastres, se do conde de Miranda, se do conde de Figueiró, se dos Tavoras, se dos Taroucas, se de todos. De Domingos Leite Pereira não se lembrou, ou apenas se lembrava quando Maria Isabel lhe dizia:

–Vossa magestade, mais dia menos dia, acha-me assassinada por elle…

O elle substituia a palavra que tanto repugnava ao rei como á princeza do seu economico serralho.

Sorria-se el-rei; e por delicadeza com a dama lhe não replicava que o expatriado lhe havia dado provas de se prezar mais a si no seu orgulho do que a ella na sua belleza.

Quando Roque enviou o recado a D. João, já sabia que Domingos Leite deliberára voltar a Lisboa se não renovar a tentativa. Flagelavam-no os apodos e zombarias que secretamente lhe iam em cartas anonymas, e as censuras de Roque da Cunha, não á covardia de homem, mas á pusillanimidade de pai.

Houve horas em que o desgraçado acariciou a ideia do suicidio; porém, lá vinha a imagem da filha arrancar-lhe o veneno como lhe arrancara a cravina. N'esta reluctancia atroz, obsediou-o o pensamento de passar a Lisboa, esconder-se em caza de Bernardo, espiar a hora em que Maria Isabel estivesse com o amante, entrar de sobresalto na caza d'ella, fugir com a filha para Castella, passar-se a Amsterdão, buscando o amparo de Francisco Mendes Nobre.

Revelou o alvitre a Roque da Cunha, que lhe respondeu:

–A final, vejo que não és marido, nem homem: és pai.

–Queres dizer que não sou honrado? —acudiu Domingos Leite.

–Não… mas ha quem duvide que o sejas…

–Se o duvidas tu, dize-o que eu a ti provarei que sou homem; e, se ha covardes que façam de ti pelourinho de injurias, que venham depois de ti ou junctamente.

–Os meus cincoenta annos perdoam os teus vinte e seis—disse serenamente Roque—Entretanto bom é que saibas, amigo Leite, que nenhum homem, antes de ti, me insultou assim, nem depois de ti receio que me insulte. Se não estivessemos sós, dar-me-hías uma satisfação. Assim… ninguem irá dizer que o matador do amante de certa dama ouviu tamanha vilta do marido de Maria Isabel. Estás perdoado, porque és fraco, fraco do coração onde tens muitas lagrimas e pouco sangue. Pagas mal a quem duas vezes expoz por ti a vida, e não se esquiva de a expor terceira vez.

–Não exporás, Roque. Não ha para quê. O meu intento já sabes que não é matar o rei; é resgatar minha filha.

–E, se te descobrirem, se te agarrarem…

–Serei julgado como assassino, sentenciado á morte, e morrerei, sem denunciar que o matador foste tu.

–Mercês… A justiça sabe quem matou, provavelmente… A minha questão é outra, Domingos Leite. Eu preciso tanto como tu sahir de Hespanha. A nodoa de covardia tanto innegrece a tua reputação como a minha. Os enviados a matar D. João fomos dois: o covarde não póde ser só um. Se vaes a Lisboa, irei comtigo: dar-me-has agazalho no teu escondedouro, e eu te ensinarei modo de passarmos a Hollanda, com tua filha, sem tornarmos a Castella, onde o desprezo pode ter as consequencias do odio, e o veneno que estava para hervar a bala do duque de Bragança servir para nós. Se queres roubar a pequena á mãe, eu te ajudarei. Os estorvos que t'o empecerem, derrubal-os-hei. Se quizeres que eu estrangule os gritos no pescoço de Maria Isabel em quanto foges com tua filha, ninguem lhe ouvirá um soluço. Se nada quizeres de mim, ao menos dá-me em Lisboa um valhacoito d'onde eu possa arranjar passagem para onde quer que seja. Que mal te faz que eu vá comtigo?

–Vem, meu amigo, que eu estou tão longe de t'o impedir, que t'o agradeço—respondeu Domingos Leite abraçando-o extremosamente.

Accordaram na partida para 18 de julho.

Communicou Roque á Junta dos fidalgos, que Domingos Leite resolvêra voltar a Lisboa e matar o rei, face a face, ou á traição, consoante se lhe occasionasse o ensejo; mas tirou a partido que ninguem se intenderia com elle sobre tal determinação, porque a sua honra se queria desligada de compromissos politicos, visto que se desaffrontava a si e não a Filippe IV nem aos fidalgos de sua parcialidade.

Riram da honra do plebeu nobilitado com a commenda de Castella; mas acceitaram a clausula como coisa de todo o ponto indifferente. A Juncta chamada da Inconfidencia deu dois mil cruzados ao interprete de Domingos Leite e renovou as ordens ao marquez de Molinguen. O pai de Angela nem d'esta feita nem da outra soubera que Roque da Cunha recebêra dinheiro; e, por que lh'o via em abundancia, suppunha-lh'o de seus salarios e liberalidades de D. Vicencia.

No dia 18 de julho sahiram de Madrid, caminho da fronteira.

Escutemos o chronista-mór do reino, fr. Francisco Brandão: «Ha muito para reparar na força do destino que chamava Domingos Leite… Depois que sahiu de Madrid entrou logo em desconfiança do companheiro, presumindo que o havia de entregar, como por vezes lhe disse no caminho, declarando que sonhára uma d'aquellas noites que elle o entregava, e se via mandar fazer em quartos; e chegou a tanto a suspeita que tinha que, uma das vezes, se poz de joelhos diante de Roque da Cunha, e, abraçando-o pelos pés, lhe rogou encarecidamente o não quizesse entregar á justiça. Estando em Badajoz na estalagem, entrou uma menina de pouca edade, e pondo os olhos em ambos, lhes disse: Uno de vos outros és traidor. E apontando em particular para o Cunha, disse: Tu tienes ojos de traidor!… Reparou logo o Leite, nas palavras, e com o annuncio d'ella renovou ao companheiro a presumpção que d'elle trazia, e continuou com a supplica de que lhe fosse fiel. Grande cegueira—prosegue Brandão—que, tendo as presumpções tão vivas, não melhorasse partido, sendo-lhe facil!..»10

Se prestamos mediana fé á perspicacia da mocinha de Badajoz que lia a traição nos olhos de Roque da Cunha, facilmente cremos que o traidor, a relanços, se temeu das suspeitas de Domingos Leite, em termos de velar as noites com medo do punhal e da cravina que o companheiro cuidadosamente aconchegava do leito.

Ás vezes era Roque da Cunha quem se prostrava aos pés da victima exorando-lhe que não suspeitasse de sua lealdade, ou então o repulsasse de si como ao mais abjecto scelerado. «Grandes foram as cautelas de Cunha—confirma fr. Francisco Brandão—para assegurar bom animo ao companheiro, receando que lhe fugisse a preza, e não quizesse entrar em Portugal, ou depois de entrado, se voltasse para Castella sem passar a Lisboa; e não foram de menos consideração as cautelas que teve para se assegurar d'elle, receoso de que o matasse com as suspeitas.11

Á quem de Badajoz sahiram da estrada real; e por veredas desfrequentadas e conhecidas de Roque, venceram grande espaço, para se desencontrarem das tropas portuguezas, em um dia e noite. No termo da violenta jornada de oitenta e cinco leguas em dez dias, o cavallo de Domingos Leite abrira dos peitos, e na aldeia, onde se albergaram, não houve modo de allugar cavalgadura. Notou Roque da Cunha ao companheiro que o presistirem alli, sem esperanças de remedio, era perder tempo, e talvez perigoso; que elle iria adiante agenciar cavallo nos Pegoens, e lh'o enviaria, a não querer o seu amigo ir n'essa diligencia, e enviar-lh'o.

–E para que vá mais leve, e menos sugeito a que me roubem, fica tu com os meus alforges, onde estão quatro mil cruzados…—ajuntou Roque.

–Oh!—exclamou Domingos Leite gracejando—Ninguem dirá que vaes do desterro! Parece que chegas de governar a India! Quatro mil cruzados!…

–Ahi t'os deixo como refens…

–Mal de mim se este dinheiro fosse o abono da tua lealdade, Roque! Se tens tenção de me atraiçoar, leva-o, e atraiçoa-me, para que me não taxem de ladrão quando me prenderem.

Roque fez um esgar de fingida magoa ou de terror de sua mesma ignominia. Domingos Leite interpretou a primeira supposição, e emendou as palavras duras com tocar-lhe amoravelmente no rosto, dizendo-lhe:

–É brincadeira, meu homem! Vai, leva ou deixa o dinheiro, como quizeres; manda-me o cavallo, e espera por mim na Povoa de S. Martinho, d'aqui cinco leguas. Levas-me de avanço apenas algumas horas, se ámanhã cedo me mandares o cavallo, e elle não fôr aleijado. Devo lá chegar por noite, se a estrada real estiver desembaraçada de tropa; senão terei de dar grandes voltas.

Roque abriu o alforge, contou cem mil reis e disse:

–Levo commigo este dinheiro, porque talvez tenha de comprar o teu cavallo, se m'o não quizerem alugar; e quem sabe se o meu tambem vai a terra, que hontem já o não sentia entre os acicates…

–Não deixes o dinheiro!—instou Leite Pereira.

–Já te disse que receio ser roubado. Que me faz deixal-o ou leval-o? Adeus, até ámanhã.

Abraçaram-se. Domingos Leite olhou-o muito de fito, e disse-lhe:

–Não me vendas… visto que estás rico!

Roque sahiu de arremesso, cavalgou, e esporeou a desapoderado galope, caminho dos Pegoens. «Não me vendas…» dissera o desgraçado. Assizadamente escrevia depois o frade: Ha muito para reparar na força do destino que o chamava

XXI

Decorrêra o restante d'aquelle dia 28 de julho, e parte do seguinte sem novas de Roque da Cunha. Cerca do meio dia, chegou um guia, portador de um bilhete para Domingos Leite. Dizia-lhe o fementido que, não encontrando cavallo que comprasse ou alugasse em Gaifões, passara a Rilvas, onde achara um sendeiro estropiado, que alugou para si, e lhe enviava a elle o cavallo para que a jornada lhe fosse menos enfadonha.

Domingos Leite sentiu-se captivo d'esta deferencia; mas, apenas montou, conheceu que o cavallo estava por tanta maneira escalavrado que só muito a passo alcançaria vencer as seis leguas, que o distanciavam da Povoa de D. Martinho, até á noute do dia seguinte. O arrieiro que o guiava recommendou-lhe pouca espora, se queria chegar com o cavallo vivo á Povoa.

–Não havia em Rilvas uma besta que se vendesse?—perguntou Domingos Leite.

–Havia um cavallo de comer tres leguas por hora, que se vendia por trinta cruzados.

–Porque o não disseste á pessoa que te mandou com este?

–Quem me mandou foi o estalajadeiro, e nada mais sei, nem fallei com essa pessoa que vossemecê diz.

O cavallo elogiado pelo arrieiro comprara-o Roque da Cunha, e n'elle cavalgára caminho de Lisboa, deixando tractada com o estalajadeiro a remessa do seu e o bilhete á aldeia onde ficára o seu companheiro.

Dizendo Domingos Leite ao criado que talvez comprasse em Rilvas a cavalgadura, observou-lhe o arrieiro que tinha ordem de o guiar por fora dos povoados, sem saber a razão porquê.

–Andam soldados na estrada real?—perguntou Leite.

–Que eu saiba, não, senhor.

Reparou na precaução o cavalleiro; e não viu a voragem. Cada vez nos encostamos com melhor juizo ao dizer de fr. Francisco Brandão: Ha muito para reparar na força do destino que o chamava.

Suggeriu-se-lhe de novo o pensamento da perfidia; quedou-se alguns segundos luctando com o palpite de retroceder; nada obstante, seguiu avante, dizendo entre si:

–Que pensaria de mim Roque da Cunha se está innocente nas minhas suspeitas, e eu me voltasse a Hespanha com o seu dinheiro!…

Quando elle assim lidava em conjecturas que se destruiam, já Roque da Cunha estava em Lisboa, e no Paço da Ribeira. Pediu ao corregedor Pero Fernandes Monteiro, que sahia da corte, o apresentasse a el-rei para negocio da maior urgencia. D. João IV, ouvindo o nome do seu recente espia em Madrid, e recordando o recado de Roque da Cunha, transmittido pelo jesuita, quanto a salvar-lhe a vida, teve grande alvoroço com a nova, e mandou-o entrar. Poz-se em joelhos o delactor, começando por implorar o perdão de seus delictos, e confessando que tivera parte em uma tentativa contra a vida de sua magestade; porém, accrescentava que se el-rei, seu senhor, lhe não perdoasse, morreria contente, levando a Deus sua alma purificada de remorsos.

Sorriu D. João IV dos remorsos de Roque da Cunha, e disse gravemente:

–Estás perdoado. Dize o que tens a dizer, e levanta-te.

Referiu Roque a tentativa de regicidio em 20 de junho, com os pormenores sabidos do leitor, e aggravou o crime de Domingos Leite com a reincidencia no intento que o trazia a Portugal.

Escutou-o D. João com torvo aspecto. Turturava-o a situação de Maria Isabel. Passou-lhe talvez no espirito o pensamento de encarregar o infame delactor de matar, em segredo, Domingos Leite, e salvar assim a viuva e a filha da ignominia que do alto da forca baixaria sobre ellas. Mas não era Roque o homem amoldado á observancia do mysterio que tal acto requeria.

Mandou recolher o espia a um quarto baixo do paço, e ordenou que viessem á sua presença o fidalgo mais possante de sua côrte, Luiz da Silva Telles, e outro não menos destemido D. Francisco de Faro e Noronha, conde de Odemira. Contou-lhes o que passára com Roque da Cunha, e enviou-os a prender Domingos Leite Pereira onde o denunciante os conduzisse.

Ao mesmo tempo, ordenava a Antonio Cavide que sem perda de tempo fizesse entrar em uma caleça Maria Isabel e sua filha, e elle mesmo as conduzisse a um mosteiro de Tras-os-Montes, á escolha do seu secretario; que nem palavra lhes dissesse a respeito de Domingos Leite, e se desculpasse com a ignorancia dos motivos que el-rei tivera para dar semelhante ordem.

Maria Isabel e Angela colhiam, ao empardecer do dia, nos canteiros do seu jardim de Alcantara, um ramilhete de flores, quando o escudeiro annunciou a chegada do secretario de estado, e a recommendação de se apressar S. Senhoria a recebel-o.

Assustou-se a dama. Sempre que este homem a procurava soavam-lhe rebates de medo no inquieto coração. Tinham-lhe dito que Cavide lisongeava o rei, alcofando-lhe novas amantes quando o sentia fatigado das antigas. Esta seria a causa da repugnancia. Angela, essa então odiava-o de instincto, sem saber precisar aquelle rancor tão desnatural em sua edade.

O estranho aspeito de Cavide incutia maior temor em Maria Isabel.

–Minha senhora—disse elle entre melancolico e solemne—ordena el-rei, meu amo e senhor, que vossa senhoria e sua filha se aprestem activamente para ao romper da manhã sahirem de Lisboa…

–Para onde?!—interrompeu Maria Isabel.

–Para um mosteiro na provincia de Traz-os-Montes.

–Mosteiro!…

–Sim, senhora minha.

–Não quero!—bradou a dama.

Sorriu-se o fidalgo, e disse:

–Quer el-rei, nosso senhor.

–Mas que fiz eu? por que me manda el-rei para um convento?

–Ignoro. Segredos de sua magestade. Não discutamos inutilmente: é sacrilegio duvidar da prudencia de sua magestade nas ordens que se dignou transmittir-lhe. Senhora D. Maria Isabel, ás tres horas da manhã está o meu coche á porta de vossa senhoria, e fora de portas estará a caleça que nos hade levar onde el-rei ordena. Não posso deter-me, salvo se tem ordens a dar-me…

A esposa de Domingos Leite abraçou-se na filha em pranto desfeito, ao passo que o secretario se retirava a passo magestoso, dignando-se saudar d'entre o reposteiro a senhora que não o via.

Quando ella ás onze horas d'aquella noite de 30 de julho enfardelava com as lacrimosas criadas os seus fatos e de sua filha nos bahús, entrava Domingos Leite Pereira na Povoa de S. Martinho, áquem do Tejo, trez leguas distante de Lisboa.

Conforme a senha concertada, deu trez pancadas na porta da estalagem com a coronha da cravina. Desceu Roque da Cunha embrulhado em um gibão e em menores, affectando sahir da cama. Abriu a porta mansamente, e disse:

–Eu já não te esperava…

–Tambem eu cuidei que não chegaria hoje… O teu cavallo vai fazer companhia ao meu na immortalidade das cavalgaduras heroicas e pôdres… Quem está por aqui na locanda?

–Ninguem afora um ou dois vilões desconhecidos. Dá cá as redeas, que eu recolho o cavallo.

E dizendo, tirou pela besta, afim de distancear o coldre das pistolas do alcance de Domingos Leite, e servir-se d'ellas em conjuntura apertada.

Seguia Domingos Leite o cavallo; e, no momento de entrar na cavallariça, frouxamente allumiada, sentiu-se agarrado de sobresalto. Eram os braços de ferro de Luiz Telles que o cingiam do peito ás costas, emquanto o conde de Odemira lhe arrancava das mãos a caravina.

Leite nem levemente escabujou nas garras dos dois fidalgos. Cravou os olhos no rosto de Roque da Cunha, e disse:

–Agradeço-te esta morte, ó infame. Todo o infeliz que chegou a conhecer n'este mundo um homem como tu, deve desejar morrer. Podem largar-me, que eu não lhes fujo nem lhes resisto, sr. Luiz Telles e sr. conde.

D'ahi a momentos, á porta da estalagem chegava uma escolta de paisanos armados. Domingos Leite foi conduzido ao centro da escolta pelo conde de Odemira, que, voltado ao preso, disse:

–Se tentar fugir, sr. Leite, é espingardeado.

E com grande silencio o levaram a Lisboa, diz o manuscripto.

Silencio comprehensivel! Os dois fidalgos que, por ordem de el-rei, o apertaram nas roscas de aço dos seus musculos, sabiam que a mulher d'aquelle homem, inevitavelmente levado ao patibulo, era amante de D. João IV. A sua abjecta mensagem de esbirros ainda lhes consentia que sentissem o opprobrio d'ella. Roque, na saga da escolta, não podemos, não poderá ninguem esgaravatar que herpes lhe mordiam a consciencia. Homens assim nem o Creador sabe decifrar o enigma que elles são. Querem que Deus deva saber o que fez. Saberá.

Domingos Leite era o unico do prestito sinistro que levava o rosto nobremente erguido, e parecia olhar para o ceo pedindo ás estrellas a luz da fé, para que na morte lhe não faltasse a esperança de outra existencia.

Entrou em Lisboa na madrugada de 31 de julho. Levaram-no ao palacio do conde de Odemira, onde respondeu ao primeiro interrogatorio com a altivez nunca vista em reo. Confessou tudo, sem nunca balbuciar o nome da mulher. Matava el-rei, disse elle, em desaggravo da sua honra.

Nem um instante de quebranto, de pavor ou de supplica! Entrou na casa do conde de Odemira, diz o doutor fr. Francisco Brandão no opusculo referido, com um desafogo tal que parecia mais alvitrista dos contrabandos d'el-rei D. João que cumplice dos maiores servidores do rei de Castella. Com esta mesma segurança de animo se portou em todos os mais lanços em que foi examinado; tendo só de bem confirmar sempre na confissão com o companheiro que o deu á prisão, e com a primeira confissão que uma vez lhe ouviram; de maneira que correndo por todo o exame e rigor das interrogações que o direito dispõe não faltou nunca na mesma rectificação de quanto sem as maiores violencias havia confessado; imperfeita virtude no maior defeito!

Em um d'esses interrogatorios, sem as maiores violencias (quer dizer que a tortura não foi das mais requintadas) fizeram-lhe esta pergunta:

–Porque não atiraste a el-rei, tendo a escupeta apontada sobre o sagrado corpo de sua magestade?

–Porque tive uma visão santissima: foi a mão de um anjo do ceo, que me levou para si os olhos e a alma.

D'esta resposta formaram os fantasistas da historia uma parvoiçada de aureolas luzentissimas que esconderam aos olhos do regicida o etherio corpo de D. João de Bragança.

Transferido da caza do conde para o segredo do Limoeiro, divulgou-se em Lisboa a noticia.

As turbas correram á porta do carcere pedindo que lhe entregassem Domingos Leite Pereira para o espedaçarem. Acudiram os ministros, clamando ao povo que o prezo era apenas reo de morte na pessoa do padre Luiz da Silveira, e conseguiram debandar a chusma dos carrascos voluntarios, ebrios de civismo.

Bernardo, quando soube da captura de seu amo, abordou-se ao cajado de peregrino, e foi caminho de Guimarães dizer a Antonio Leite que seu filho morria em desaffronta de sua honra.

Ao fim de 16 dias de prisão, Domingos Leite foi sentenciado.

Eis a sentença integralmente trasladada da original, e publicada em 1833 pelo desembargador Gouvêa Pinto:12

10.Relação do assassinio intentado por Castella contra a Magestade de El-rei D. João IV nosso Senhor, e impedido miraculosamente. Lisboa, 1647.
11.Obra citada.
12.Ao meu erudito amigo, o sr. Innocencio Francisco da Silva devo o favor do traslado, cuja orthographia se transcreve fielmente.
  Até aqui o nosso eminente escriptor Antonio Augusto Teixeira de Vasconcellos.
  O representante d'esse filho illegitimo de D. João IV, o sr. Manoel Leite de Bragança Correia, é actualmente… administrador do correio de Felgueiras. Não nos parece que esteja dignamente collocado este fidalgo tão consanguineo do sr. D. Luiz I. Aviso aos seus reaes parentes. A direcção do correio de Felgueiras deve render 480 réis por dia.
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