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XIX

Ás dez da noute sahira Roque. Ás onze já Domingos Leite, vestido de feitio que nenhum traço arguia o aparaltado do escrivão do civel, parava no largo da Porta do Salvador, contemplando a casa immersa em trevas, que nenhum pontinho luminoso interceptava. Que fazia alli?

Fantasiára que o seu velho criado lá estaria, não obstante lhe dizer Roque da Cunha que a justiça lhe dera tractos até saber onde o amo se escondia; e, sendo assim, de certo o expulsaria Maria Isabel.

Ajustou-se á frontaria da caza, e tocou no postigo da fresta, chamando Bernardo.

N'este lance, pessoa que elle não vira em uma janella a refrigerar-se na aragem da noite, disse com voz senil:

–Ahi não mora ninguem.

Domingos estremeceu; mas, cobrando animo com a probabilidade de segurança de nenhum perigo, perguntou:

–Sabe dizer-me onde está um homem que aqui morava ha coisa de dois mezes?

A pessoa interrogada não respondeu; retrahiu-se da janella, e fechou-a. Domingos Leite, ouvindo o bater das portadas, não podia perceber a descortezia ou qualquer outro sentimento de quem quer que fosse, e principiava a censurar-se da indiscreta pergunta, quando uma porta rodou vagarosamente, e voz tremula de dentro disse anciadamente:

–Entre, entre depressa…

Domingos reconheceu a voz de Bernardo.

O velho colheu-o nos braços suffocado por convulsos gemidos, e cahiu de joelhos exclamando:

–Ai meu amo que vem entregar-se á morte!..

–Não venho… não te assustes… Deixa-me subir ao teu sobrado e conversar comtigo, meu pobre amigo…—murmurou o amo.

O velho precedeu-o na subida da ingreme escada, pedindo-lhe que fallasse baixinho, porque no segundo andar estava gente ainda a pé.

–Foi certo darem-te tratos, Bernardo?—perguntou Domingos Leite sentando-se no unico tamborete da pobre quadra.

–Quem lh'o disse, meu senhor?

–Soube-se em Madrid.

–Foi verdade. Aqui estão as costuras nos dedos. Descarnaram-me os ossos. Eu já não podia com as dôres quando disse que vossa mercê tinha uma caza nas Olarias; mas disse porque me bacorejava o coração que meu amo não estava lá…

–Meu infeliz amigo!…—atalhou Domingos com os olhos aguados—E não voltaste para casa de… Maria Isabel?

–Fui ter-me com ella…

–Aonde?

–A um palacete em Alcantara, onde me disseram que ella morava umas pessoas da justiça em casa do corregedor, e por tal signal que…

–Por signal que…

–O melhor é calar-me, sr. Leite; mas… a fallar verdade…

–O quê? podes fallar… Disseram-te que era uma mulher perdida…

–É verdade, e não me mentiram, queira vossa mercê perdoar-me…

–Fallaste-lhe?

–Sim, sr. Fallei-lhe com mais lagrimas que vozes. Disse-lhe que o senhor seu marido passára uma noite na caza do Salvador; que estivera no quarto a embalar o berço… N'isto, a menina que estava alli a ouvir-me, rompeu a chorar que cortava o coração, e a clamar que queria ver seu pai; que queria ir com o seu Bernardo ver o seu paizinho; que a mãe era muito má em não a deixar ir, e outras coisas, meu amo, que faziam chorar as pedras. E vai a mãe, neste entrementes, pega por um braço da filha com arremessão, e tira por ella lá para o interior da casa. Eu fiquei estarrecido, a ouvir os gritos da menina lá dentro, até que chegou um escudeiro, e me mandou sahir d'alli por ordem da fidalga. «Pois sim, eu vou; mas vá vossê dizer á senhora que o seu velho criado não a offendeu; e que eu vim cá para lhe dar conta das alfaias da sua casa, ou saber se alguma lhe falta, que de certo não fui eu que a tirei.»—Foi o escudeiro com o recado, e voltou logo dizendo que a fidalga não queria saber de contos; que me puzesse na rua. Tornei-lhe a mandar pedir que ao menos me mandasse entregar a minha árca onde eu tinha o meu fato e as minhas economias. O escudeiro, talvez porque tambem era pobre e me viu a chorar, teve pena de mim e tornou lá dentro. D'ahi a pouco voltou e disse-me que ia commigo para me dar a minha arca. Veio com effeito, e pelo caminho fora, de Alcantara até aqui á rua, e depois lá no meu quarto, contei-lhe tudo que se tinha passado; e elle que não sabia de nada, porque sahiu do palacio real de Belem para ir servir aquella fidalga por ordem do sr. Antonio Cavide, disse-me então o que vossa mercê, pelos modos, já sabe…

–Sei… E então, meu Bernardo, estás muito pobre?

–Não, meu amo. Ainda tenho dinheirinho do que vossa mercê me dava quando era solteiro; mas, como estou muito acabado e não posso trabalhar com as mãos desde que m'as quebraram na tortura, não tenho remedio senão viver com muito pouco, para não ter de ir pedir por portas. E vossa mercê tem mingua de dinheiro? Eu tenho alli quinze moedas de ouro de quatro cruzados cada uma; se vossa mercê as quer, assim Deus me salve como eu lh'as dou com todo o meu coração…

–Não preciso; obrigado, meu querido amigo, obrigado… Disseste-me que minha filha chorava—volveu Domingos Leite, depois de longo silencio e profundo recolhimento.

–Se chorava!.. quando me viu e conheceu, corria para mim com os bracinhos abertos; mas a mãe botou-lhe a mão ao braço, e puxou-a para si. Assim que eu contei a passagem do berço, e da tristeza com que o paisinho da menina olhava para elle, as lagrimas saltaram-lhe como punhos; e a mãe lançava-lhe de esguelha uns olhos furiosos, que pareciam querel-a espedaçar…

–Ai!.. se eu a visse…—murmurou Domingos Leite.

–Como hade vossa mercê vel-a, meu senhor!… Não pense n'isso, porque tenho ouvido dizer que, se o apanham, a sentença menor que tem o meu amo é degredo perpetuo, se não lh'a derem peor… A que veio a Lisboa, sr. Domingos Leite? que peccados o trazem aqui?…

–Sabel-o-has, quando fôr tempo…—respondeu Leite serenamente—Escuta, Bernardo: sabes que tenho pai?

–Pois não sei!..

–Chama-se Antonio Leite, vive em Guimarães, e tem officina de cutelleiro na rua Infesta. Agora, jura-me que cumprirás o que te vou pedir.

–Não é mister jurár, senhor!

–Se acontecer eu ámanhã ser preso ou morto…

–Sancto nome de Jesus!—clamou Bernardo.

–Não me interrompas com lastimas que não remedeiam o meu destino… Attende, meu amigo… Se acontecer eu amanhã ser preso ou morto, parte logo para Guimarães, procura meu pai na rua Infesta, e dize-lhe que eu morri ou vou morrer, sacrificando a vida infamada á honra de a perder em desaffronta de um grande ultrage. Não tens aqui papel e tinta. Se tivesses, escrever-lhe-hia: mas, ámanhã, por esta hora, se eu estiver preso ou morto, vai e dize-lhe, se te não lembrar mais nada, que D. João IV era o amante da mulher de seu filho. Mas, se eu não estiver preso nem morto, e algum acontecimento explicar o mais que eu te não digo, pede-te o teu pobre Domingos Leite que leves comtigo á sepultura o segredo que adivinhares.

Bernardo queria debalde replicar; mas as palavras eram-lhe estranguladas nos soluços.

N'este conflicto, Domingos Leite abraçou o velho; e, desprendendo-se-lhe dos braços, desceu as escadas subtilmente.

Eram já desertas as ruas, quando entrou na casa do Becco de Ponce Leão; e, atravessando os outros predios até ganhar o sobrado, cuja janella esquinada dominava as ruas dos Torneiros e parte da Fancaria, abriu o alforge de moscovia, e tirou os frascos de peçonha, e um caixotinho com quartos e balas. Hervou o pelouro e os zagalotes, mergulhando-os cautelosamente no toxico: sevou a cravina de polvora, metteu as balas calcando-as com a vareta sobre a bucha (Nota 24.ª) introduziu as doze costas ou quartos, lascou, antes de escorvar, com a lamina de uma agumia o rebordo da caçoleta, azeitou o gatilho, experimentando-o, encheu a escorva, bateu na culatra tres punhadas afim de sevar plenamente de polvora o ouvido, e trez vezes fez pontaria em diversas direcções. Feito isto, apagou o candil, abriu de manso as portadas da sacada, e ao lampejo tremulo de algumas luminarias que vasquejavam, esteve examinando as duas ruas confluentes; depois, retrahindo-se, abocou a escopeta a dois alvos, que, naturalmente, se lhe figuraram o corpo sacratissimo de sua magestade. Esta phrase, um tanto descabidamente faceta, corresponde ao esgar de riso ferino que lhe refegou os beiços, vibrando os musculos faciaes.

Ás trez horas da manhã começaram a repicar os sinos da bazilica de santa Maria Maior, e logo todas as torres saudaram a jubilosa arraiada da vetusta metrópole. Já se ouviam as charangas de atabales e clarins que, nas ruas comvisinhas do templo, annunciavam a sahida da procissão, mais matutina que o sol. Aquelle tão comprido dia de junho era mister começal-o ao arrebol da manhã para que o tempo não escasseasse ás alegrias do povo.

Domingos Leite, escutando a resonancia estridula dos clarins e o tanger festivo dos sinos, foi ao passado buscar memorias da sua alma despedaçada, e todas viu em um relance afflictivo de olhos. Tambem elle tinha acordado alegre ao ruido d'aquellas musicas quando era moço e rico, feliz e amado. Tambem elle n'aquellas manhãs de luz e flores folgava de madrugar, e passeiar as ruas de Lisboa, respirando o acre das espadanas e rosmaninho que verdejava o transito, por debaixo dos doceis e grinaldas. Ainda no anno anterior, sahira elle áquella hora, depois de uma noite mal-dormida, com a filhinha pela mão, e entrara na bazilica, ensinando a creança a pedir a Deus por si e por elle.

Quanto mudado, ó desventura! Que voragem entre o secretario do marquez de Gouvêa e o determinado assassino de D. João IV! Como elle se contemplava na escuridade profunda de sua alma ao reflexo do gentil, do invejado mancebo que fôra! Que horrendissimo doer não seria o do seu espirito, quando a cabeça lhe cahía para o peito, e as mãos enclavinhadas e tremulas comprimiam o pescoço, como se quizesse impedir que aos ouvidos lhe chegasse o regosijo d'aquellas toadas!

E áquella mesma hora, Maria Isabel, despertada pelos repiques do mosteiro do Calvario, saltava alegremente d'entre as cortinas adamascadas do leito, chamava a aia que a penteasse, e ordenava que lhe vestissem Angela.

–Então d'onde vai ver a procissão, sr.ª D. Maria Isabel?—perguntou a aia com a confiança de criada antiga e quinhoeira dos segredos da ama.

–Vou para o palacio do Galvão, no Rocio, ou para casa do senhor da Trofa, na Rua dos Torneiros: ainda não sei.

–No Rocio é mais bonito…—volveu a aia.

–Mas eu prefiro a Rua dos Torneiros.

–Eu bem sei porque, minha senhora…

–Ah! sabes? és muito esperta!… Ora dize lá…

–É porque el-rei passa mais chegadinho á caza do senhor de Trofa que á do Galvão… Adivinhei?

–Parece-me que sim…—assentiu Maria Isabel com uma despejada denguice—Tenho passado estes dias tão aborrecida…

–Pois, sim, sim… Não sahe de caza a minha senhora… passa as noutes sósinha… Quando se vai embora a rainha para Lisboa?

–No principio do inverno.

–Que praga!.. E a sr.ª D. Maria Isabel, por amor d'ella, nem ás janellas vai! Tambem não sei por que razão el-rei tem medo que a rainha desconfie… Sempre ouvi dizer que o rei se lhe dava pouco dos ciumes d'ella. Acho que o sr. D. João IV o que receia é que a vejam os fidalgos que se ajuntam em Alcantara emquanto sua magestade cá está… Se alguem tem ciumes, não é a rainha, é o rei…

Sorriu-se lisongeada Maria Isabel, e murmurou:

–És tola, és tola… Quem trocaria eu n'este mundo por el-rei?

–Isso lá, minha senhora—replicou a aia—tem-se visto d'essas trocas… Bem podia V. S.ª gostar mais dos condes que eu por ahi vejo a passear no largo do que de el-rei; apesar de que sua magestade está ainda muito fresco, e parece um mancebo… Como vai V. S.ª vestida á procissão?

–Levo saia de seda verde com barras pretas de velludo; gibão de tafetá azul, com cossoletes de ouro.

–E que manto leva?

–O de seda verde.

–O branco vai-lhe melhor sobre o gibão azul.

–Vai? pois levarei o branco.

–E chapins? os azues com rubis?

–Não; os verdes com diamantes.

–Eu acho os outros tão lindos!.. Ainda me lembra o contentamento com que V. S.ª calçou outros da mesma côr, faz agora dois annos, quando foi a esta mesma procissão com seu marido… Lembra-se?

Maria Isabel não lhe respondeu. A aia, affeita a lidar com os caprichos da senhora, absteve-se de repizar no assumpto desagradavel, posto que Maria Isabel, algumas vezes, ouvisse fallar indifferentemente do marido.

–A que hora vai a senhora para a rua dos Torneiros?

–A cadeirinha hade estar prompta ás nove horas.

–Por que não vai no coche do ministro Cavide, que lh'o offereceu?

–Não me appetece andar em côches alheios. Heide comprar um quando me parecer.

–Faz V. S.ª muito bem… não sei como el-rei lh'o não tem dado…

–Não quero. Sou bastante rica. Posso ter côche sem dever favores ao rei.

A conversação foi cortada pela vinda de Angela, que já estava vestida e encantadoramente galante com o seu gibão escarlate de passamanes de prata, saia de trez barras com debruns de lhama de ouro, chapins altos de setim branco e tacão escarlate, volante de rendas na cabeça, ondeando por sobre as espiraes de tranças louras que lhe deslizavam nas espaduas meio nuas.

Ás 9 horas entraram Maria Isabel e a filha na cadeirinha. Pouco depois, sahia D. João IV do palacio de Alcantara, em côche, com o manto de grão-mestre da ordem de Christo, precedido dos reis d'armas, e seguido do principe D. Theodosio, e cento e cincoenta cavalleiros das ordens militares, em cavallos pomposamente ajaesados.

El-rei ia só e melancolico; mas, no rosto carregado, relampedejou-lhe um clarão de alegria, quando, ao passar pela cadeirinha que ao longe conhecera, viu aquella formosa face cujo primeiro verniz de pudor se desbotára nos beijos do padre Luiz da Silveira.

A melancolia de el-rei quer o meu manuscripto legitimal-a com estes catholicos dizeres: «No oratorio da quinta de Alcantara tinha sua magestade commungado, esteve em oração mais do que costumava, e sahindo, disse á rainha, nossa senhora: Eu vou com grande trabalho. E dizem que, havia tempos, lhe tinham dito que em uma procissão do corpo de Deus o haviam de matar; e el-rei respondêra que junto ao sanctissimo sacramento lhe não podia succeder mal.» Ainda bem!

Se estes pios casos de commungar, e sahir mal disposto, e meditativo no sinistro vaticinio, assombraram o real semblante, ainda bem que o langoroso olhar da Traga-malhas espancou o profeta de máo agouro, e abriu nos labios do rei commungado um sorriso que radiou nas bochechas dos seus vassallos.

Por volta das onze horas, Domingos Leite, espreitando o concurso de povo, que já tomava os lados das ruas, notou que a seteira baixa que abrira para o lado da Fancaria era a melhormente azada para desfechar sobre o rei, visto que alli a multidão, abrindo uma especie de clareira, obrigada pelo aperto do cunhal das duas ruas confluentes, deixava a descoberto o palio, ao qual devia seguir-se a familia real. Regeitou, portanto, o plano traçado de dísparar pela seteira alta, que dava sobre a rua dos Torneiros, parecendo-lhe quasi impossivel de ponto elevado, por mais firme que pozesse o fito, acertar no rei.

Assim, pois, que os atabales estrondearam no topo da Fancaria, Domingos Leite pegou da cravina, e foi ajoelhar rente com a seteira baixa. O dia era ardentissimo; e, elle, sentindo as mãos geladas, friccionava uma na outra receando que o dêdo do gatilho fizesse tremer a escopeta, e desviar o tiro. Era o frio do terror; era a honra convencional dos homens subjugada pelo ingenito respeito á vida humana.

Entreviu a passagem dos cavallos á destra, cobertos de telizes de velludo escarlate com as armas de Bragança em relevo de ouro, levados de redea por lacaios com a libré real. Passou S. Jorje, cabeceando a sua plumagem do murrião, cavalgado sobre o cavallo que resfolegava involto no cairel cravejado de diamantes e variada pedraria. Seguia-se o pagem do sancto general, a disputar com o amo a posse das riquezas do oriente e das concavidades do oceano em perolas e rubis e esmeraldas. Deslizaram os trinta e sete estandartes dos officios com as insignias de cada um; e logo as cento e cincoenta cruzes das confrarias com variegadas roupetas. Depois, as bandeiras das parochias. Em seguida, as irmandades do SS. Sacramento, que eram trinta e oito com opas escarlates. Principiavam agora as communidades religiosas, que eram quarenta, psalmeando alternadamente uns cantares como responsorios funeraes nos ouvidos de Domingos Leite. Succediam as congregações de clerigos regulares; os tribunaes com os seus presidentes de catadura sombria, os magistrados de toga, os cavalleiros de Christo, de S. Thiago e S. Bento de Avis com os mantos capitulares. Depois a cleresia e o cabido. Agora os coros da musica dilecta do rei; depois os bispos mitrados, e os turiferarios bamboando as nuvens fumosas dos incensos.

N'este ponto, Domingos Leite encostou a face á parêde para descobrir do esconso o palio. Avistou-lhe as franjas de ouro do sobre-ceo atravez da nebrina dos perfumes; e por entre as varas, e por sobre a espadua do arcebispo eleito, viu a fronte de D. João IV.

Elle temia e tremia do quebranto de sua alma, chegado aquelle indeclinavel trance; mas a presença altiva do tyranno que lhe tirava o pão, a patria, e a filha, engolphando-lhe tudo na devassidão da esposa, sarjou-lhe o coração, repuchou-lhe o sangue em jactos ardentes ao cerebro, queimou-o em sedes de fera, deu-lhe as facinorosas deleitações do scelerado.

Estava já o palio a dez passos de distancia da caza. Domingos Leite afastara-se para apoiar a extremidade da caravina no envasamento inferior da seteira. Desconfiára do tremor do pulso e da vertigem dos olhos. Ajoelhou, levantou o feixo, e ajustou o dedo ao gatilho. Já o rei, desviado apenas dous passos do palio, se mostrava a descoberto… Mas, no mesmo instante, Domingos Leite viu duas damas que encobriam o rei. É que D. Maria de Arrayolos e a camareira-mór, curvando-se para levantarem do chão um panno de seda que cahira da mão ao principe D. Theodosio, quando enxugava o suor, ficaram, por momentos, quasi á frente do rei, forçadas pela deslocação de alguns fidalgos que, ao mesmo tempo, tentaram, abaixando-se, evitar ás duas senhoras a cortezia de levantar o panno. Ainda Domingos Leite, tenteando pontaria, esperou clareira por onde coubesse uma bala; teve-a n'um relance; mas a certeza de cravar algum dos doze quartos nas senhoras que ladeavam D. João, paralisou-lhe o dedo do gatilho.

Restava feril-o pelas costas, ao desandar para a rua dos Torneiros. Subiu acceleradamente ao sobrado de cima, onde abrira duas seteiras na sacada angular, que olhava para duas ruas.

Apenas entrou no sobrado e correu a mirar a volta que a procissão ia rodando da Fancaria para a Rua dos Torneiros, antes de descer os olhos sobre a rua, pol-os maquinalmente nas balaustradas de uma caza fronteira, e viu Maria Isabel, e ao lado d'ella uma creança, uma visão da alma ingolphada em Deus… Era Angela, a sua filha!

E, cravando n'ella os olhos, e arquejando em angustia que o lacerava com delicias, e ouvindo o coração que chamava por Angela, sentiu-se cahir, largar a arma, dobrar os joelhos, ajoelhar, ajoelhar de mãos postas, cobrir-se de lagrimas, e ouvir como dos labios de um estranho: «Salva-me, ó filha, salva-me!»

E D. João IV passou, olhando de soslaio para Maria Isabel, que ajoelhára, e encostára a fronte ás mãos, formando graciosamente um docel para resguardo do sorriso que as outras damas devassavam, e que ella muito se rejubilava que lh'o vissem....

....................................

Ás duas horas, Domingos Leite, com o disfarce que tinha vestido, chegou ao postigo da Graça.

Roque da Cunha, avistando-o de longe, foi desprender os cavallos que escarvavam impacientes em uma barroca socavada entre dois combros de piteiras, e sahiu com elles á estrada chã.

–Morreu?—perguntou Roque.

–Não.

–Não?… Que me dizes?… Feriste-o? Não acertaste?..

–Não lhe atirei.

–Oh!..—exclamou Roque da Cunha—Que diabo fizeste então?..

–Nada… Vamos embora, se te não escandaliza um covarde na tua companhia…

–Eu ia agora perguntar-te se lhe não atiraras por covarde… Porque me não deixaste estar comtigo, Domingos Leite!.. Com que cara entraremos em Madrid!…

–Pois vai só, e deixa-me…—replicou Domingos Leite.

–Fazes-me uma grande compaixão!… Que lagrimas são essas…

–São umas lagrimas que eu ainda tinha no coração, e só podia choral-as, vendo minha filha!… Foi minha filha que salvou o rei…

–Vamos, que eu ouço tropel de cavallos na calçada da Graça…—disse Roque da Cunha—Conhecer-te-hiam?..

–É impossivel…

Cavalgaram, e deram de esporas. Na assomada de um dos outeiros de Alvalade pararam, e olharam na direcção de Lisboa. Ninguem os seguia. Era uma cavalhada de campinos, que voltavam da procissão do Triumpho, e recolhiam aos seus cazaes.

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