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Problemática I: análises sobre o Estado na periferia do capitalismo

As análises sobre o papel geral do Estado na sociedade capitalista e sobre a sua função nas formações sociais dependentes e periféricas não são novas. A maioria dos trabalhos sobre a problemática dos Estados burgueses periféricos data dos anos 1960 e 1970. Em seus aspectos gerais, a preocupação comum centrou-se nas seguintes caracterizações: 1) os Estados latino-americanos tornaram-se burgueses somente quando o modo de produção capitalista substituiu o modo de produção feudal, momento em que se implanta e domina no espaço nacional —transformação que teria ocorrido a partir de 1930; 2) eles seriam o resultado da revolução burguesa em geral, comandada pela transformação capitalista na esfera econômica; 3) em tais países somente poderia surgir um Estado burguês autoritário, intervencionista e de exceção permanente pelo fato de a revolução burguesa ter ficado inconclusa, situação que seria mais marcante em países mais atrasados.

Embora tais caracterizações apontem para fatos sócio-históricos gerais inegáveis, elas compartilham três supostos problemáticos que interditam o avanço da análise científica do objeto em questão.

O primeiro suposto diz respeito à concepção linear e cronológica da transição dos modos de produção pré-capitalista ao modo de produção capitalista. A esse respeito, três aspectos teóricos importantes devem ser salientados. Primeiramente, sabemos que em seus estudos sobre a transição de um modo de produção para outro, Marx insistiu que não existe passagem direta de um modo de produção a outro, ora do escravismo para o capitalismo, ora do feudalismo para o capitalismo (Marx e Hobsbawm, 1971; Hobsbawm, 1971).

Em segundo lugar, na transição histórica das formações sociais pré-capitalistas ao capitalismo se interpõem relações de produção pré-capitalistas, relações de produção servis. Marx também detectou que no processo de transição ao capitalismo se conservam ainda, ou não são completamente dissolvidas, as “relações pessoais de dependência, carência de liberdade pessoal, no grau que seja, e agrilhoamento a terra como acessório dela, servidão, no sentido estrito da palavra” (Marx e Hobsbawm, 1971, p. 30). Isso significa que o surgimento do trabalhador assalariado e comprador de seus meios de subsistência pressupõe a existência prévia de relações de produção servis como fase necessária para a generalização das relações de produção capitalistas. Numa formação em que são dominantes tais relações de produção, o camponês dependente tem a possibilidade de acumular algum lucro devido ao desenvolvimento da agricultura de alimentos e da produção artesanal. Todavia, nesse processo de transição, devese salientar o caráter antecipatório do papel do direito, do político e, sobretudo do papel crucial do Estado em relação ao econômico. Este caráter foi detectado por Marx nas suas observações sobre a “acumulação primitiva”: legislação fabril e outros aspectos da intervenção do Estado na fase inicial de instauração do capitalismo —um processo marcado por um inusitado autoritarismo e violência.

Em terceiro lugar, as observações teóricas feitas por Lênin sobre o caráter das formações sociais capitalistas e sobre o Estado burguês afastam a concepção economicista e cronológica (passagem direta) da problemática da transição dos modos e formas de produção précapitalista ao modo de produção capitalista. Em seu célebre trabalho El desarrollo del capitalismo en Rusia (1981), Lênin mostrou que na formação social russa do final do século XIX, marcada pelas relações de produção servis em razão da presencia majoritária do campesinato e da grande propriedade fundiária, a transição ao capitalismo no país poderia adotar dois caminhos: a via junker ou a via farmer —mais lento no caso da primeira—, por conservar “ainda por muito tempo os traços da servidão”, e supostamente mais acelerado no caso da segunda. Nesses processos de transformação, a conservação de traços de relações de produção pré-capitalistas nunca foi considerada como um fenômeno anômico ou irracional, diferentemente da maioria dos autores que abordam a problemática na América Latina. Todavia, tal fenômeno é considerado como uma contradição inerente ao desenvolvimento histórico do capitalismo em qualquer país, central ou periférico (Lênin, 1981, pp. 15, 651 e segs.).

O segundo suposto diz respeito à concepção do tipo de sociedade que teria vigorado antes da formação do Estado burguês na América Latina: tal sociedade foi caracterizada indistintamente como colonial (modo de produção colonial) e feudal (modo de produção feudal). Sabemos que na América Latina nunca foi implantado o modo de produção feudal,2 embora no debate travado entre marxistas e nacionalistas-populistas nos anos 1940 e 1950 a implantação do mesmo aparece como um fato real. Com exceção do Brasil colonial, certas regiões do Caribe e do sul estadunidense, onde vigoraram relações sociais escravistas (e a instauração de uma variante de Estado escravista moderno) até pelo menos o último quartel do século XIX—conforme os estudos de Genovese (1968, 1979) e Gorender (1978)—, no resto do continente vigoraram relações sociais servis, muito diferentes das relações sociais feudais implantadas na Europa. No período republicano (1810 em diante), a maioria dos estudiosos sobre o assunto detecta a coexistência de relações sociais servis com relações sociais capitalistas (estas se implementam com muita dificuldade e se expandem com lentidão), com dominância das primeiras. Nesse contexto, surge uma instituição que a maioria dos autores denomina colonato (com suas diversas formas de exploração do trabalho e de formas de produção nas distintas regiões da América Latina), caracterizado pela prestação de sobretrabalho compulsório e gratuito do trabalhador direto ao patrão latifundiário.

Estudos sociológicos sobre a exploração do trabalho no campo mostram que em alguns países como, por exemplo, na Bolívia, vigoravam ainda, no final dos anos 1970, relações sociais típicas do colonato e relações sociais servis. Neste último caso, exploração de índios guarani pelos latifundiários bolivianos na região sul do país: os índios eram agrilhoados por dívidas. Entre os principais mecanismos de sujeição estava o livro de contas, junto com a promessa de pagamento do salário no final de ano, o qual o patrão nunca pagava (Healy, 1982). O autor identificou 21 famílias latifundiárias do município Huacareta (sul do país) que utilizaram mais de mil chiriguanos/servos. Nos dez municípios dessa região existiam 300 proprietários, dentre os quais 160 utilizavam índios guarani, cujo número chegou a sete mil famílias. Todavia, o autor mostra que entre os indicadores de riqueza dos latifundiários economicamente poderosos daquele município estavam: 1) o valor das vendas anuais de produtos agrícolas (gado, porcos, milho etc.); 2) a obtenção de créditos dos bancos estatais; 3) tratores; e 4) o plantel de chiriguanos. Este último era o indicador chave da riqueza dos proprietários fundiários.

Tais estudos empíricos conferem ampla validade às teorias sobre a transição histórica das formações sociais pré-capitalistas ao capitalismo, conforme enunciado acima: a interposição de relações de produção pré-capitalistas, relações de produção servis, isto é, a detecção de um processo dialético de dissolução-conservação3 das antigas relações sociais pré-capitalistas que coexistem com as relações sociais capitalistas.

Já o terceiro suposto problemático sobre as caracterizações do Estado diz respeito à sobrestimação da instauração das relações de produção capitalista na América Latina e, por conseguinte, da exclusão da análise concreta da estrutura jurídico-política (Estado). Ou seja, a formação do Estado burguês foi entendida como uma mera consequência (um epifenômeno) da transformação na esfera econômica: os Estados latino-americanos foram qualificados como burgueses ou capitalistas prescindindo de uma definição prévia, sem a aplicação de uma análise específica da estrutura jurídico-política (necessária à reprodução das relações de produção capitalista), porém simplesmente com a aplicação de um conceito de Estado em geral. Ou por outra, os Estados latino-americanos pós-1930 foram, mormente, qualificados como Estados burgueses ou capitalistas porque as relações de produção dominantes nessas formações sociais eram relações de produção capitalistas – uma operação de mera transposição, para o plano do Estado, dos resultados obtidos na análise de classificação das relações de produção. Assim, tais Estados deveriam, automaticamente, ser Estados burgueses ou capitalistas. O que obstaculizou – através de uma operação reducionista —a consideração do Estado como objeto relativamente autônomo de análise (Saes, 1990, p. 21).4

Por outro lado, existe um outro elenco de elementos igualmente problemático das caracterizações supramencionadas que também deve ser salientado. Em primeiro lugar, tais análises negligenciam o exame tanto da diferenciação das transformações e mudanças das formações sociais capitalistas centrais e periféricas, como dos aspectos constantes em ambas as formações sociais. Se as primeiras atravessam uma fase avançada no atual estágio do capitalismo, as segundas experimentam ainda fases de transição capitalista periférica e de implantação de tipos de desenvolvimento capitalista dependente, embora ambas as formações tenham sido determinadas, de um modo desigual, pelo estágio avançado do capitalismo monopolista de Estado no pós-1930 e pós-1945. O que significa que existem diferenças importantes no funcionamento das duas formações capitalistas: defasagem histórica nas formações capitalistas periféricas tanto na ocorrência das fases das revoluções burguesas em geral, como nos estágios do desenvolvimento capitalista; atraso significativo do processo de industrialização em relação às formações capitalistas centrais; industrialização acelerada e induzida (num tempo relativamente curto) nas formações sociais da periferia do capitalismo. Todavia, estas últimas tendem a ser determinadas pelo funcionamento do Estado burguês periférico, bem como pelas economias capitalistas centrais, nomeadamente pela ação marcante do imperialismo estadunidense no caso dos países latino-americanos.

Em segundo lugar, tais análises aplicam uma comparação vis-à-vis entre as formações sociais do capitalismo periférico e as das formações do capitalismo central, o que seria amplamente problemático. Vale dizer, partem do suposto de que o desenvolvimento do capitalismo e da democracia burguesa (aspectos da revolução burguesa em geral) iniciados nas últimas formações sociais seria o único modelo histórico generalizável a ser aplicado às formações capitalistas atrasadas. Mais especificamente, existiria uma confusão entre revolução política burguesa (a formação do Estado burguês) e revolução burguesa em geral (constituição de novas relações de produção, novas formas de divisão do trabalho, novas classes sociais, uma nova estrutura do Estado, uma nova ideologia dominante): esta se inicia antes e termina depois da primeira (Saes, 1990, 1998a). O que vai de encontro com a concepção, presente na maioria dos autores que abordaram o assunto na América Latina, “da revolução política burguesa como o momento histórico único de concretização da passagem ao capitalismo, ou como o ponto-limite para além do qual uma formação social passa a se desenvolver plenamente segundo as leis de movimento do capitalismo” (Saes, 1990, p. 16).

Em terceiro lugar, a intervenção do Estado na economia tende a ser vista como negativa e irracional, e no limite, como disfunção ou anomia. Se tal intervenção é um traço constitutivo do conceito de Estado em geral, modificando-se e adotando formas diferentes de acordo ao modo de produção estabelecido (escravista, despótico, feudal, capitalista), no modo de produção capitalista —pensamos— a intervenção do Estado burguês adquire aspectos peculiares: separação formal das esferas econômica e política, não intervenção direta da estrutura jurídico-política no aparelho econômico (processo produtivo). No fundamental, o Estado burguês intervém politicamente organizando a hegemonia política das classes ou frações de classe capitalistas exploradoras dominantes. Mais especificamente, as formas de intervenção econômica estão sobredeterminadas tanto pelas funções cruciais do Estado burguês, como pelas fases pelas quais atravessa o capitalismo (concorrencial, monopolista, capitalismo monopolista de Estado, acumulação flexível ou neoliberalismo, etc.). Noutros termos, uma vez feita a revolução política burguesa (instauração do Estado burguês), ocorre um processo dialético de interconexão sem determinação (correspondência mútua ou implicação recíproca) entre as esferas política e econômica nas formações sociais capitalistas, centrais e periféricas, constitutivas do processo de reprodução das sociedades humanas —neste caso, reprodução ampliada do capital— conforme as teses de Marx (1970) no Terceiro Livro de O Capital, retomadas por Poulantzas (1968) para elaborar seu conceito de Estado capitalista e por Saes (1990, 1998a) para elaborar o conceito de “Estado burguês”.5 E as funções cruciais do Estado seriam, conforme Poulantzas e Saes, garantir as condições ideológico-políticas necessárias para a reprodução das relações de produção capitalista e organizar de um modo particular a dominação de classe: organização interna do aparelho de Estado (burocracia) comandada pelas regras do burocratismo (aspecto típico do Estado burguês, que não se encontra na organização interna dos Estados nas formações sociais anteriores ao capitalismo).

Nas fases dos processos de implantação de tipos de desenvolvimento capitalista dependente o Estado cumpre um papel crucial:6 intervém maciçamente na aceleração do desenvolvimento das forças produtivas capitalistas e na reprodução das relações de produção correspondentes dominadas pelo capital estrangeiro imperialista no espaço nacional, concretizando os interesses políticos desse capital como produto da autonomia relativa do Estado diante das classes dominantes cuja relação com a luta de classes é direta (Souza, 2002, pp. 61-62 e 55 e segs.) —isto é, organiza a hegemonia do capital monopolista estrangeiro e das frações de classe burguesas nativas acopladas a esse capital. Ou inversamente, as forças econômicas preponderantes agem na retardação do processo do desenvolvimento capitalista nos países dependentes, embora a tendência geral seja a de dissolver as relações de produção pré-capitalistas, mas de forma lenta e conflituosa, dependendo do país. E esse papel do Estado não é isento de contradições devido a uma dupla situação: a dependência diante dos países capitalistas centrais (principalmente das múltiplas intervenções do grande capital estrangeiro e do imperialismo estadunidense na América Latina), e a presença de relações sociais correspondentes a modos de produção pré-capitalistas: bloqueio de uma reforma agrária efetiva, não capitalização do campo, manutenção do latifúndio, das classes da pequena produção e do campesinato.

As formas intermediárias ou variações de desenvolvimento, no caso da América Latina, se processam de acordo com esse caráter dialético da relação de correspondência mútua entre processo político (Estado) e processo econômico. Daí as caracterizações da industrialização não apenas dependente, mas também retardatária e periférica; ou retardatária, dependente e acelerada, como o caso brasileiro; países que atravessaram um processo de desenvolvimento capitalista mais tardio e recente (a partir dos anos 1950 e 1960), porém com baixo nível de industrialização, como é o caso da maioria dos países latino-americanos, diversos tipos de economias de enclave em certos países andinos (atividade mineiro-extrativa) e centroamericanos (monocultura ou domínio total da economia pelo capital estrangeiro). Assim, tanto as transformações substanciais como as de cunho mais leve na esfera econômica tendem a se processar através desse processo de correspondência mútua entre economia e política, cujo papel o Estado capitalista dependente justamente tende a reproduzir no espaço nacional as condições de dominação determinadas pelo capital estrangeiro imperialista.

Nesse contexto de implantação de tipos de capitalismo dependente, as transformações socioeconômicas, impulsionadas ou relativamente bloqueadas pela intervenção do Estado e pelas forças capitalistas dominantes, têm implicações políticas da maior importância. Mencionemos rapidamente quatro implicações políticas que nos parecem mais relevantes (Saes, 1984, 2001):

1) a ascensão política da pequena burguesia ou classe média nacionalista antioligárquica e da classe trabalhadora que contribuíram (de um modo e intensidade desigual) a organizar politicamente as massas populares (pequena burguesia, camadas médias e campesinato) e passam a influenciar a política de Estado;

2) a pressão direta (sem mediação partidária, ou através das organizações sindicais) das massas trabalhadoras urbanas sobre o Estado para que este implemente uma estrutura necessária às exigências da reprodução da força de trabalho —tal reivindicação converte-se em luta política permanente;

3) a redefinição da hegemonia política no seio do bloco no poder, a qual transforma a forma de Estado e o regime político e acaba provocando a emergência de novas crises políticas —esta seria a implicação política crucial;

4) o processo de industrialização tende a ser comandado pela burocracia estatal, o que provoca constantes conflitos entre esta e as classes ou frações de classe que compõem o bloco no poder e lutas intensas entre elas.

A maioria desses fatores socioeconômicos e políticos emergiu, na América Latina, com a instauração do sistema populista tradicional (1930-1960), que executou uma política de integração das massas trabalhadoras no sistema político (outorga de legislações social e trabalhista) com o objetivo de buscar uma base social de apoio para realizar seus projetos desenvolvimentistas —isto é, uma política de integração/controle das massas trabalhadoras.

Enfim, o populismo marcou uma fase do processo de instauração de variantes de capitalismo dependente que é caracterizada pela crise crônica de hegemonia no interior do bloco no poder e pela necessidade do Estado de mobilizar as massas trabalhadoras com o fim de diminuir a instabilidade política que decorre dessa crise (Saes, 2001, pp. 77-78). A fase seguinte é marcada pela ascensão da hegemonia política do capital monopolista estrangeiro e a instauração do Estado militar, que liquida o Estado e sistema populista. Mas tal período se caracteriza pela emergência de novas crises e contradições políticas, abrindo assim uma nova fase de instabilidade política decorrente basicamente da incapacidade do Estado militar de desmobilizar/desorganizar, parcial ou completamente, as massas trabalhadoras e camponesas.

Para as massas populares, os problemas cruciais de cunho socioeconômico e político do período do populismo se alastram no período do autoritarismo militar, porém adotam novas formas. Neste período, continua sem solução (que se agregam aos novos problemas na fase do capitalismo neoliberal) a questão camponesa e étnica (maiorias indígenas excluídas nos países andinos e nos países latinoamericanos), acentuada defasagem entre o padrão material de vida das massas populares e as exigências capitalistas de reprodução da força de trabalho, problemas de democracia política e dos direitos civis, políticos e sociais, etc. Numa palavra, surgem novas formas de lutas tanto dos antigos como dos novos setores que integram os movimentos populares, os quais pressionam o Estado, direta e indiretamente, para que atenda as suas diversas reivindicações.7

A partir de meados dos anos 1980 assiste-se a uma nova fase do capitalismo (no Chile essa nova fase começou no em 1973 com golpe contra Allende), que aprofunda a dependência dos países latinoamericanos, marcada pelo desmantelamento do Estado (contra o capital público e nacionalizado, resquícios das formas de Estado anteriores: populismo e autoritarismo militar) e pela limitação dos direitos políticos e sociais das massas trabalhadoras conquistadas nas fases anteriores: o neoliberalismo. Abre-se assim um novo ciclo de crises e contradições políticas que redundam na emergência de modalidades de instabilidade nas esferas econômica e política. Trata-se de uma nova fase histórica na qual os Estados da região atravessam atualmente um momento de crise da hegemonia do capitalismo neoliberal. E tal fase caracterizar-se-ia por um novo tipo de dependência, diferentemente daquela que teria vigorado até os anos 1980.

Para Saes, que nos alertou sobre a emergência duma “nova dependência”,8 o esgotamento do modelo da antiga dependência teria ocorrido nos anos 1980, que defendia a instauração de um padrão de industrialização baseado na substituição de importações e a colaboração do capital estrangeiro (um tipo de desenvolvimento associado). A periferia do capitalismo estaria atravessando atualmente uma situação de passagem da antiga dependência a uma mais perversa, uma forma extrema, caracterizada pela unilateralização desse tipo de dominação econômica no plano histórico: o aprofundamento do empobrecimento causado pela pilhagem das economias periféricas —uma situação semelhante à “acumulação por despossessão” de Harvey (2010). Trata-se duma situação em que se impõe a manutenção do modelo de industrialização tradicional: o capital estrangeiro não realiza novos investimentos para fazer avançar a industrialização associada e, ao invés disso, impõe uma política estatal neoliberal baseada na privatização do setor público, a promoção da abertura comercial (contra o protecionismo) e a internacionalização do sistema financeiro na América Latina para auferir ganhos imediatos. Em consonância com esse raciocínio, Saes tinha sustentado que a implementação dessas três políticas (privatização, desregulamentação e abertura econômica ao capital internacional) implica numa mudança no padrão de intervenção do Estado capitalista na economia (Saes, 2001, p. 82) e não a diminuição ou nenhuma intervenção do Estado na esfera econômica. As crises econômicas de 1997, 2000, 2008 e a crise atual sob a pandemia do coronavírus ou covid-19 (2020) não fazem mais que confirmar as hipóteses mencionadas: os Estados burgueses dos países centrais praticamente “salvaram” o capital financeiro internacional e mergulhou na crise os países da periferia do capitalismo, não só repassando o ônus mas também aprofundando a dependência diante desse capital.

Em suma, as diversas fases de implantação do desenvolvimento capitalista dependente ao longo do século XX (caracterizado como desigual, retardatário e induzido) nos países mais desenvolvidos (Brasil, México, Argentina), carregaram (e ainda carregam) novas formas de luta de classes e de crises políticas intensas. Estas são marcadas pela ascensão política da classe trabalhadora, das classes médias e do movimento popular que passam a reivindicar seus direitos e influenciar a política estatal contra a emergência de novas frações burguesas e a não liquidação política e econômica da grande propriedade fundiária, submetidas atualmente aos grandes monopólios do agronegócio. As lutas e crises políticas tendem a causar modificações na composição do bloco no poder (que fica mais complexo), na redefinição da hegemonia política e na relação desse bloco com as classes dominadas. O que incide na revogação (de forma autoritária e violenta) das instituições políticas democráticas e repercute na instauração de novas formas de Estado e de regime político, provocando assim novas formas de crise e instabilidade política (cf. Saes, 2001, pp. 123-124). Trata-se assim de um quadro sócio-histórico que se configura como politicamente crítico e instável, instabilidade necessária a essas diversas fases de instauração do capitalismo dependente, nas quais o aparelho do Estado é o alvo privilegiado da luta de classes.

No caso dos países latino-americanos marcados por um desenvolvimento capitalista intermediário ou baixo (economias de enclave etc.), mormente o capital estrangeiro induz o Estado, através de múltiplas formas de estrangulamento, a retardar ininterruptamente a diversificação nos setores chaves da economia, contribuindo mais para a manutenção dos níveis de industrialização já alcançados (estagnação): boicote, bloqueio político-institucional contra as tentativas retardatárias de experiências nacional-desenvolvimentistas, mesmo tímidas, e de implantação de tipos de capitalismo de Estado, como no atual caso da Venezuela. Ou então, para a indução de um processo de estagnação seguida de (ou com) desindustrialização (regressão). E o reforço desse tipo de economia redunda no acréscimo dos conflitos e lutas sociais e, por conseguinte, da emergência de novas crises, contradições e instabilidade política nesses países.

Assim, num dado país com as características mencionadas, e num contexto de regressão dos níveis (intermediário e baixo) de desenvolvimento capitalista já alcançados, ao invés de ampliar e acelerar as relações capitalistas de produção, o capital estrangeiro em geral, comandado pelo capital financeiro internacional (reforçado pela intervenção de sua fração mais especulativa), pode agir no sentido de manter esse tipo de economia e, sobretudo conservar as relações de produção pré-capitalistas (pequena produção, o campesinato, desemprego massivo, maior informalização da economia). Daí o impacto desestabilizador nas formações sociais dependentes (com maior impacto nos países mais atrasados) que se manifestam nas crises e contradições, e que repercutem na esfera estatal: a manutenção e o reforço dos diversos tipos de intervenção do Estado e a tendência ao autoritarismo, mesmo nas formas de Estado democrático e de regime democrático. Sem falar dos golpes de Estado cívico-militares depois de instaurado o regime democrático no período pós-1982-1985 na América Latina, os casos contemporâneos de deposição de vários presidentes (Honduras, 2009; Equador, 2010; Paraguai, 2011; Brasil, 2015, Bolívia, 2019) ilustram fortemente nossas hipóteses.

Esse caráter interventor do Estado (e seu decorrente autoritarismo) na instauração do capitalismo em geral nos países centrais foi também detectado pelas análises de autores não-marxistas importantes. Entre estes autores destacamos os estudos de Gerschenkron (1968) publicados na década de 1960. Trata-se de uma obra importante que analisa tanto as condições do atraso dos países capitalistas europeus com baixo e médio desenvolvimento econômico no século XIX e inícios do século XX, como o tipo de industrialização encetado por esses países (França, Itália, Alemanha, Rússia, Bulgária). O estudo não apenas se aproxima das conclusões de certos autores marxistas que abordaram (direta ou indiretamente) as temáticas de implantação de tipos de desenvolvimento capitalista e do processo de industrialização nos países atrasados da Europa, como também dialoga criticamente com eles (Lenin, Hilferding, Kalecki e principalmente Gramsci). Consideramos que o modelo de análise do autor sobre o caráter do atraso econômico e o tipo de industrialização aplicado ao caso europeu (tipos de industrialização com caráter alto, médio e baixo) pode ser bastante frutífero se o aplicarmos à América Latina, principalmente no que diz respeito ao estudo da relação entre o Estado e desenvolvimento capitalista.9

Uma outra abordagem dos mesmos temas, focalizada de uma perspectiva neo-marxista crítica, oferece Skocpol (1979, 1980, 1994). Seus importantes trabalhos centram-se na análise sobre a relação entre processo de desenvolvimento capitalista, o papel do Estado e as consequências socioeconômicas e políticas, tanto nos países centrais quanto nos periféricos ao longo do século XX. Uma análise semelhante, porém que focaliza a problemática da relação entre as empresas multinacionais, as estatais e o capital autóctone, é oferecida por Evans (1980). Nessa mesma linha analítica, o autor examina o Estado empresarial e sua relação com a formação das classes sociais no contexto do desenvolvimento do capitalismo dependente no século XX (Evans, 1983).

Por outro lado, deve ser destacado o trabalho de Malloy e Conaghan (1994). Incorporando alguns aspectos teóricos das análises feitas por Skocpol, Evans e P. Hall, os autores —que adotam uma abordagem eclética sobre a teoria do Estado: neo-marxismo, neofuncionalismo, pluralismo e neo-institucionalismo—10 analisam a problemática das mudanças do Estado e do desenvolvimento do capitalismo no início da fase neoliberal tomando em conta a relação de três instâncias importantes: Estado, mercado e sociedade civil. Tais instâncias não teriam poder próprio, mas um poder que emanaria da relação entre as outras duas instâncias da sociedade, o qual seria delegado a um grupo de atores políticos —recrutados por critérios políticos (democracia política) e técnicos (burocráticos)— que apenas cumpririam o papel de representantes do Estado e da burocracia estatal. Assim, essas duas instituições intermediariam os conflitos de interesses entre a sociedade civil e o mercado.

Em suma, os autores partem do suposto de que a sociedade capitalista de tipo avançada estaria baseada num Estado não-corporativista ou não-clientelista, cuja unidade do poder político seria diluída numa multiplicidade pluralista de centros de decisão, instaurando-se, entre eles, um certo “equilíbrio automático” provocado pela “harmonização” dos diversos grupos de pressão (empresas, sindicatos etc.) que representariam as forças econômicas de uma sociedade supostamente integrada. Em sociedades com um capitalismo heterogêneo e atrasado como as dos países latino-americanos—neste caso os países dos Andes Centrais—, as relações entre as principais instâncias da sociedade tenderiam a ser pautadas por um Estado com ascendência clientelista, populista e corporativista, ocasionando assim conflitos, crises e instabilidade política permanente.

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