Читать книгу: «O Regicida», страница 7

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Nos beiços de Domingos Leite crispava o que quer que fosse analogo a um sorriso, como se as dôres lancinantes da nevralgia facial lhe vibrassem os musculos labiaes. O marquez contemplava-o. E elle, sem poder exprimir-se, exercitava com as mãos e cabeça uns gestos significativos de torvação.

–Sr. Leite…—disse o mordomo-mór, tocando-lhe affavelmente na mão esquerda com que elle comprimia o coração.

–Sr. marquez…—respondeu muito abatido Domingos Leite.

–Força e alma!

–Sinto que tenho ambas as cousas… e demais! Antes Deus me fizesse mais fraco.

Passados momentos, proseguiu:

–Parece incrivel, mas é atrozmente verdade, que eu peço e desejo que V. Ex.ª me conte como ella se perdeu… Não foi por necessidade, que eu tudo que ella tinha lhe deixei. Não foi por paixão, por que o rei não tem as graças fulminantes que prostrem n'um estrado ou n'um leito real a mulher de alguma honestidade. Então que foi? um longo trabalho de seducção? uma cadeia de perfidias que deram de si a posse pela violencia imprevista? Não pode ser. Ha trez mezes que eu sahi do reino, e ha quinze dias que a rameira se mudou para o real bordel… Como foi isto então, sr. marquez? Faça de conta que refere a historia a um estranho, que afinal se hade rir do marido, e achar que o rei não tinha obrigação de ser mais honrado que o padre Luiz da Silveira…

Domingos Leite, n'este ponto do seu lento e sinistro discorrer, desfechou uma risada estridula que fez frio na espinha dorsal do fidalgo; e logo abruptamente continuou com a maxima gravidade:

–Mas quem diz aos reis que elles são mais invulneraveis que os padres?

–Falle baixo!—acudiu o marquez chegando-lhe a mão tremente até aos beiços—Sr. Leite, olhe que ha muita gente n'esta casa… Peço-lhe que me não exponha, e peço-lhe que se não precipite irremediavelmente…

–Eu fallarei baixinho, sr. marquez—replicou Domingos Leite, quasi em segredo—Perdoe-me V. Ex.ª estas explosões; são relampagos sem raio. Eu não faço mal a ninguem. Sou um proscripto… um proscripto da laia de João Lourenço da Cunha, que lá em Castella usava pontas de ouro. Ora eu, que sou pobre, heide usal-as… da sua natural materia…

E riu rispidamente, esfregando com phrenesi as mãos nos joelhos, com umas figurações de louco.

–Valha-me o ceo!—tornou o marquez de Gouvêa—Cuidei que o infortunio de muitos, em casos desta natureza, lhe daria o exemplo do que é a verdadeira dignidade de um marido…

–Qual é? o despejo?

–Não: é o desprezo.

–E por ventura que sinto eu senão o desprezo por ella? Mas a mim é que eu não posso desprezar-me tambem, sr. mordomo-mór! De uns homens, como o conde D. Gregorio Castello Branco, sei eu que não só não desprezam mas até acatam suas mulheres, se D. João IV houve por bem diffamar-lh'as. Não sei se esta tolerancia é cortezia apprendida na frequencia da côrte. Eu… bem sabe V. Ex.ª que sou da arraia miuda, e creio ainda que me seria mais airoso ter uma esposa honesta que ter-m'a no seu leito el-rei nosso senhor…—E ria-se!

–Meu amigo—redarguiu tanto ou quanto impacientado o mordomo-mór—desculpo-lhe o desabafo das ironias, e até lhe desculparia as mais aceradas injurias a quem quer que fosse; mas não é assim que o seu destino hade melhorar, sr. Leite. Respeitemos a fatalidade e remediemos o que poder ser.

–Diga V. Ex.ª, meu nobre amigo.

–Sua mulher, querendo ir para Castella unir-se a seu marido com sua filha…

–Ella!.. ella unir-se a mim?

–Ou subjeitar-se ao despreso, com tanto que podesse aliviar-lhe a desgraça levando-lhe a menina, sua mulher, repito, quiz vender os bens; mas a justiça impediu-lh'o. Consultou-me sobre solicitar d'elrei a licença; eu desapprovei-lhe semelhante recurso; ella menospresou o meu conselho, e fallou ao rei. Mal sei o que passou entre ambos. O que facil me foi saber de pessoa competente foi que el-rei, por intermeio de Antonio Cavide, é hoje o que o sr. Leite sabe. Agora que de fugida lhe disse o que me affligiu grandemente referir-lhe, vamos ao ponto, vamos satisfazer o motivo que o trouxe a Portugal. Quer sua filha?

–Sim, sr. marquez.

–E, obtida ella, retira-se sem estrondo, sem escandalo?

–Immediatamente.

–Pois então vá o sr. Domingos Leite para sua casa, e ámanhã dê-me ponto onde eu o encontre ás dez da noute. Não venha aqui. Onde se alojou?

–Na caza deshabitada de um amigo.

–Aonde?

–Na rua dos Vinagreiros. Seria difficil a V. Ex.ª achar de noute o numero da porta.

–Espere… Ás nove em ponto o meu coche hade estar nas teracenas. Vossemecê vai aforrado, entra, e lá me encontra. Então lhe darei noticia das minhas diligencias de ámanhã. Entretanto, se eu antes d'essa hora tiver precisão de lhe dar aviso, como hade ser?

–Em casa de Maria Isabel está um criado a quem V. Ex.ª pode mandar qualquer aviso, que elle irá communicar-m'o.

–Tranquillize-se, sr. Leite, seja homem; sem isso não pode lograr a satisfação de ser pae extremoso.

Domingos Leite curvou-se até beijar a mão do marquez, e sahiu.

XVI

Esperava-o Bernardo com o ouvido collado ao postigo.

Domingos Leite entrou no quarto do criado, sem sensivel mudança no rosto. Palavra, que denunciasse as revelações do marquez, não proferiu alguma. Bernardo perguntou-lhe a mêdo se descobrira a paragem da senhora. Respondeu que não: disse verdade.

Conversaram ácerca de Angela. O pai perguntava coisas tão insignificantes que parecia futilissimo, se não fosse desgraçado em extremo. O criado insistiu outra vez em lhe recontar o caso de ser a menina açafata. Transtornaram-se as feições do amo. Ouviu-lhe o escudeiro um ringir de dentes asperrimo, e um como rugido estrangulado nos gorgomillos. Ás duas horas da noute, Domingos Leite pediu ao criado alguns sobejos da sua ceia. Sentia-se esvaecer de fraqueza. Comeu e disse:

–Aqui tens meio cruzado pela ceia e pelo repouso de duas horas.

–Ó meu amo!—exclamou Bernardo—vossa mercê falla serio ao seu velho criado?!

–A ceia deu-te a soldada de tua ama e a casa em que me abrigas d'ella é. Tu vendes-me parte do que é teu.

–Não o intendo, senhor.

–Deixa-me encostar a cabeça, que ha quatro noutes que não durmo e hei medo de insandecer. Antes de romper a manhã, acorda-me.

Pouco depois, Domingos Leite, sopitado em lethargia de febre, sonhava alto, pronunciando vozes que gelavam de pavor o criado. Eram apostrophes em que o nome suavissimo da filha se envolvia com expressões indecentes e epithetos que entram sem rebuço nos alcouces. De mistura, estallavam ameaças de sangue, e a palavra rei soava bem distincta por entre as objurgatorias que a precipitação tornava inintelligiveis.

O escudeiro, mais supersticioso em sonhos que esperto em tirar inferencias da vida real, compoz com as phrases soltas que ouviu a desgraçada situação de seu amo. Chorou então copiosamente ajoelhado á beira do catre.

Á hora em que devia chamal-o, o amo adormecera serenamente e a febre remittira. Bernardo pediu conselho ao seu retábulo do Senhor dos Passos, sobre deixal-o descançar ou espertal-o d'aquelle tão curto dormir. Figurou-se-lhe que a vontade divina lhe inspirava que deixasse o infeliz restaurar forças para succumbir depois de muitas e acerbas batalhas.

Era já nado o sol havia muito, quando Domingos Leite espertou. Bernardo, entre receios e lagrimas, disse-lhe que o não chamara, porque á hora aprazada adormecera seu amo, depois de arder em febre agitadamente.

–Mas porque choras tu?—perguntou Domingos Leite.

–Porque choro, senhor!… Ai! quem o viu, quem o viu, meu querido senhor!

E abraçou-se n'elle, abafando-lhe os gritos no seio.

O infeliz deixava-se abraçar, e murmurava:

–É verdade, Bernardo!… quem me viu!… O que era eu ha sete annos! Tão festejado, tão alegre, tão rico, tão esperançado… E agora!… sabes tu lá quanto eu sou digno de compaixão!…

Não tinha o ceo beneficio maior a dar-lhe que o d'aquella torrente de lagrimas…

–Como heide eu sahir d'aqui a tal hora?—disse elle ao criado.

–Se não tivesse grande precisão de sahir, que mal estaria aqui vossa mercê?—e proseguiu com risonho modo—Se ficar, paga-me o alimento e a dormida…

–Ficarei—conveio Domingos Leite—Olha, Bernardo se eu podesse ver a cama de minha filha… o berço, aquelle berço em que ella ás vezes dormia no meu quarto…

–Lá está ainda debaixo do leito de vossa mercê. Nunca mais entrou alguem na sua alcôva. A menina muitas vezes pediu á mãe que a deixasse lá entrar; mas a senhora—isto vi eu!—indo uma vez a entrar, para fazer a vontade á filhinha, assim que deu com os olhos nas coisas como vossa mercê as deixou, rompeu em tal choro que sahiu d'ali quasi nos meus braços.

Domingos Leite interrompeu-o asperamente.

–Cala-te, homem… O nome d'essa mulher nunca mais o pronuncies na minha presença, se me estimas!

Pareceram rapidas as horas d'aquelle dia a Domingos Leite.

Encerrou-se no seu quarto, lendo e rasgando papeis tirados dos seus contadores, memorias da sua mocidade, extractos das suas leituras, escriptos politicos com que seu talento ganhara a estima do marquez de Gouvêa, bilhetes de João Pinto Ribeiro e do desembargador João Sanches de Baena, de incumbencia ou de agradecimento de serviços prestados arriscadamente ao duque de Bragança.

A espaços, o escudeiro encontrava-o com a face debruçada sobre os braços, amparando-se no bofete. Quedava-se o velho soffreando a respiração para o ouvir dormír; e ás vezes confundia os soluços com o alto respirar d'um somno irrequieto. Outras vezes achava-o curvado sobre o espaldar do berço, com os olhos marejados a embevecerem-se na almofada, em quanto o leitosinho se balouçava movido pela mão.

Neste lance temia o velho que seu amo enlouquecesse, parecendo-lhe muito mulherengo aquelle acto de estar um homem acalentando um berço vasio.

Ahi pelo meio da tarde, o guarda-portão do marquez de Gouvêa procurou o escudeiro de Domingos Leite, e, com muito resguardo, o encarregou de levar um papel lacrado a seu amo.

Bernardo fôra prevenido desta mensagem. Acceitou carta, sem dizer ao portador que seu amo estava ali.

O contheudo era a prorogação do encontro para a noite do seguinte dia, visto que nada podia resolver sem mais algumas horas de actividade.

O mordomo-mór não tinha descançado. Vamos no encalço d'este leal amigo de Domingos Leite Pereira.

A hora desacostumada na manhã d'aquelle dia fôra em seu coche acordar o secretario d'estado Antonio de Cavide. Relatou-lhe, tão ingenuo quanto imprudente, a vinda clandestina do marido de Maria Isabel, de proposito para levar a filha comsigo a Madrid, e continuou:

–Tem. V. S.ª8 occasião de fazer grande serviço a el-rei, á sua amante, á filha de Domingos Leite, a este desgraçado homem e a mim. Tantos favores a tantas pessoas em pouco esforço estão. Consiga V. S.ª que Maria Isabel me entregue a menina que eu lhe prometto sahir Domingos Leite de Portugal na mesma hora em que eu lh'a restituir. Por este modo, evitamos que o marido exasperado publique o destino da mulher; evitamos dissabores a el-rei; evitamos grandes pesares e talvez remorsos a essa mulher, finalmente resgatamos a menina de uma situação pouco exemplar.

–Diz V. Ex.ª optimamente—obtemperou Antonio Cavide—Vou vestir-me, e saio em direitura para Alcantara a procurar Maria Isabel. Não sei se poderei vel-a, porque el-rei está hoje a caçar na tapada do palacio, e a sua Diana deu agora em querer segurar a tréla dos falcões—ajuntou o velhaco sorrindo—No entanto, aguardarei o ensejo de me ver a só com ella. V. Ex.ª conhece o genio de el-rei. Se eu lhe digo que o temerario Domingos Leite, affrontando a justiça, ousou metter-se em Lisboa, temos na rua os corregedores todos com a sua matilha de esbirros na piugada do pobre homem, que será aperreado depois do que nós sabemos…

Aqui arregaçou o secretario outro riso infame e prosseguiu:

–O melhor será que ella diga a el-rei que de seu moto proprio envia a pequena ao pai. El-rei não lh'o impede, porque a presença da creança o estorva; e as coisas feitas assim ficam excellentemente feitas.

–Muito bem—concordou contentissimo o mordomo-mór—A que horas calcula V. S.ª poder responder-me?

–Ás duas da tarde devo estar de volta de Alcantara. O Domingos Leite está hospede de V. Ex.ª?

–Não, sr—respondeu ingenuamente o marquez—disse-me que se recolhera á rua dos Vinagreiros, e eu fiquei de me encontrar com elle á noite, ou avisal-o hoje de qualquer nova.

–Pois eu vou satisfazer a V. Ex.ª; entretanto, esse infeliz que tenha cuidado sobre si, porque de Madrid tem vindo confidencias a el-rei muito aggravantes para Domingos Leite e para o tal Roque da Cunha, que assassinou o padre Silveira. Eu ouvi dizer a Gaspar de Faria Severim que, precisando de um fino espião em Madrid, o patife mais ajustado ao intento era o tal Roque da Cunha; e sua magestade, que conhece os mais egregios malandrins de Portugal e conquistas, approva o alvitre. Domingos Leite que se precate… Isto revéllo eu muito á puridade a V. Ex.ª por saber quanto esse desafortunado homem lhe é agradavel, e os bons serviços que elle fez na restauração, escrevendo e fallando nas juntas do padre Nicolau da Maya.

Retirou-se o marquez muito agradecido e esperançado no bom exito da sua discreta ideia.

Antonio Cavide foi sem detença a Alcantara, apeou á porta do palacio real, e soube que elrei estava almoçando. Perguntou se sua magestade era sosinho; e, como lhe respondessem affirmativamente, deixou o côche, e foi a pé em demanda de um palacete contiguo ao mosteiro das religiosas do Calvario.

Residia ahi Maria Isabel Traga-malhas com sua filha, criadas e pagens. A visinhança não a presumia theuda do monarcha. O fausto do viver justificava-o naturalmente a fama dos seus teres. Dizia-se que a desgraça do ex-escrivão do civel, seu marido, fôra causa d'aquella retirada para longe do concurso da gente, e que o avisinhar-se de mosteiro tão rigoroso era já indicio de profunda piedade a que se acolhiam enormes desgostos. Isto resava a opinião publica que resa sempre bem.

D. João IV recebia Maria Isabel, a horas mortas, por uma porta do extremo da tapada. Ás vezes, passavam-se dias inteiros sem que sua magestade alvorotasse os gamos e veados da floresta; outras vezes, o real caçador, com a escopeta atravessada sobre as pernas, e a fronte pendida ao seio da sua Diana, como dizia o secretario, ouvia os gorgeios dos rouxinoes emboscados nos olmedos e espinheiros. A opinião publica não dizia isto: era Antonio Cavide, e mais algum fidalgo da intima confiança do rei, que o segredavam entre si.

Annunciou-se o ministro a Maria Isabel. Sahiu a recebêl-o a açafatasinha, e d'ahi a pouco a mãe com semblante de quem se espantava e assustava da visita.

Expoz Cavide a sua mensagem, segundo o plano convencionado com o marquez. Interrompera-o ella com exclamações, com esterismos, já corando, já empalidecendo; quando, porém, o expositor chegou ao ponto essencial, aconselhando a entrega da menina, Maria Isabel replicou inflexivelmente que não dava sua filha, e que ninguem lh'a arrancaria dos braços.

Desanimou o agenciador, receando desvaliar-se aos olhos de el-rei nos olhos da sua amante. Pediu perdão de a ter aconselhado, beijou-lhe mesureiramente a mão, e ergueu-se para sahir.

Perguntou-lhe, ao retirar-se, Maria Isabel se seu marido se alojára na casa do Salvador. Respondeu Cavide que lhe constava estar Domingos Leite na rua dos Vinagreiros.

Antes de duas horas da tarde, o marquez sabia que as diligencias do secretario se malograram. Tergiversou entre desenganar e esperançar Domingos Leite. Venceu-se alfim do mais generoso pensamento, resolvendo ir pessoalmente fallar com Maria Isabel, calculando reduzil-a com o vaticinio das funestas consequencias da sua recusação.

Quando ás quatro horas da tarde a procurou, a dama era fóra de casa, posto que a sua aia dissesse estar de cama com subito incommodo. Maria Isabel, sem prevenir o seu real amante, nem usar grandes resalvas de honestidade, entrou no atrio do palacio com Angela pela mão, e foi conduzida reverentemente ás salas.

D. João IV, mais contente que sobresaltado da inesperada visita, foi receber a gentil comborça ainda mal enchuta das lagrimas. Referiu ella com entrecortadas vozes, sem pejo da filha, e quasi deitada nos braços do rei, o que passára com Antonio Cavide, e concluiu mostrando-se receosa e até certissima de que Domingos Leite, não lhe tirando a filha, seria capaz de matal-a. Era sincera no seu terror.

Tranquillisou-a o rei; e, sem medear tempo, mandou chamar Antonio Cavide. Apartou-se com elle, e deu-lhe ordens rapidas. Ao cahir da noute, o secretario d'estado entrava em Lisboa, a tempo que o marquez, por palpite de maior desgraça, sabendo que o valido fôra chamado a Alcantara, o estava esperando no seu palacio.

Cavide, vendo o mordomo-mor na sua sala de espera, acercou-se d'elle, e disse-lhe ao ouvido:

–Não ha tempo a perder. V. Ex.ª saiba corresponder a esta confidencia… Domingos Leite que se esconda, que fuja, porque vai ser preso. Adeus. Vou procurar o conde de Odemira; vou cumprir ordens d'el-rei. O amor é o diabo, sr. marquez, o amor é o diabo! Estas Dalilas tosquiam o nosso Sansão, e queira Deus que o templo se não alúa sobre elle e sobre nós…

–Biltre!—disse de si comsigo o marquez.

Era noute cerrada.

O mordomo-mór só confiou de si o melindroso aviso. Disfarçou-se com a maior precaução, e foi á porta do Salvador.

Domingos Leite esperava ainda alguma nova, quando o escudeiro abriu a porta ao desconhecido, que se intitulou enviado da pessoa que já ali tinha mandado recado a seu amo.

Esquivava-se a dar-lhe entrada, quando Leite Pereira reconheceu a vóz do marquez. Subiram para o primeiro sobrado. A terrivel noticia revelava-se no aspecto do consternado fidalgo. Domingos comprehendeu-o.

–Nada feito, sr. marquez?

–Nada feito. Serei breve porque o tempo urge. Cavide fallou a Maria Isabel na entrega da filha. Foi repellido. Quiz eu experimentar a condição d'essa mulher. Procurei-a; mas não estava em caza. Devia estar com el-rei. Perto da noute soube que o conde de Odemira ia ser encarregado da sua prizão.

–Ainda bem!—exclamou Domingos Leite—Quero ser prezo!

–Não diga absurdos, que me faz arrepender de lhe votar tamanha amisade! Quer ser preso! para que?

–Direi entre ferros quem é o rei de Portugal!

–Não dirá nada entre ferros, porque ha mordaças. De sobra sabia Francisco de Lucena quem era D. João IV, e nada disse, morrendo innocentissimo, e D. João IV de sobra sabia que Lucena morria innocente… e deixou-o morrer. (Nota 22.ª) Não me conteste nem resista, que perde o unico amigo que tem no reino. Fuja sem demora. Vá para Madrid, se não prefere antes ir para França. Eu, á força de idear traças de lhe restituir sua filha, heide conseguil-o cedo ou tarde. Espero commover o rei, pintando-lhe a dor do infeliz marido e pae…

–De modo nenhum!—obstou Domingos Leite com azedume—Peço-lhe que me não avilte, sr. marquez! Deixe-me morrer com dignidade! Não quero a misericordia do tyranno, do adultero, do devasso, que eu por entre punhaes de castelhanos e de portuguezes acclamei em Evora. Não quero d'esse homem senão um saldo de contas que se hão de liquidar…

Sio!—atalhou o marquez, tapando-lhe a bôcca, e sopesando os cabellos que se lhe irriçavam de terror na fronte gelada.—Cale-se, mentecapto!… cale-se! que, senão, eu maldigo a hora em que vim aqui!..

–Perdão, meu nobre amigo!—volveu Domingos Leite—Se v. ex.ª se arrepende de vir aqui, repêso me sinto eu tambem de o haver procurado. Entretanto, como v. ex.ª se me figura traspassado de um certo horror de cumplicidade nos meus propositos de vingança, o meu dever é preserval-o de susto, retirando-me ámanhã para Castella.

–Ámanhã não, hoje, é urgentissimo que seja hoje; porque, ao raiar da manhã, esta casa póde ser rodeada de quadrilheiros.

–Em tal caso vou retirar-me para outra casa que tenho, e sahirei d'ella ao romper do dia.

–Vae para a rua dos Vinagreiros?

–Não, senhor marquez… E, quando fosse, quem denunciou o meu esconderijo da rua dos Vinagreiros?!

–Fui eu por imperdoavel imprudencia a Antonio de Cavide. Cuidei que o tinha compadecido, e hoje receio que elle dirija para lá e para aqui ao mesmo tempo os aguasis.

–Vá v. ex.ª descançado que não heide ser encontrado aqui nem lá.

–Meu amigo do coração!—clamou o mordomo-mór abraçando-o—Adeus! adeus! fie de mim o seu futuro, o seu perdão, e a entrega da sua querida filha!

8.Os secretarios de estado tiveram excellencia de juri desde a lei de 29 de janeiro de 1739. Os mordomos-móres já recebiam excellencia no tempo de D. João IV. Em 1648 o padre Antonio Vieira tractava de vossa-mercê em cartas o secretario de estado Pedro Vieira da Motta.
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