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IV

Em alegre paz derivaram dois annos.

Ao fim do primeiro, deu ao amor de seu marido Maria Isabel uma menina.

Pouco depois, duplicou-se a riqueza do cazal com o falecimento do Traga-Malhas, e a entrada da viuva n'um Recolhimento da Terceira ordem de S. Francisco.

Não obstante, a felicidade do antigo aprendiz de boticario era dardejada pela inveja disfarçada no epigramma.

Quando Maria Isabel apparecia nas festividades de igreja, egualando-se nas pompas ás mais ricas fidalgas, rumorejavam-se facecias que eram victoriadas com frouxos de riso.

A corrupção da epoca vestia-se de gala nas mulheres, Maria Isabel, porque sabia que as fidalgas a remoqueavam, de dia para dia dava novo pasto á satyra. Arrastava saias golpeadas de mosqueta; corpetes recamados de oiro; chapins estrellados de prata e perolas; fraldelhins agrinaldados de rubis. Sahia em liteira sua, das mais adamascadas e pintadas, com lacaios bizarramente vestidos.

E, por sobre tudo isto, realçava como engodo ao despeito aquella esplendorosa beldade de Maria Isabel, a quem as senhoras dos palacios, arruinados como a honra propria, chamavam a Traga-malhas tanoeira.

N'este em meio, Domingos Leite Pereira, advertido pelo marquez de Gouveia que posesse côbro ao luxo da mulher, respondeu que era bastantemente rico…

–E bastantemente inepto, sr. Leite—acudiu o mordomo-mór—Quando um marido assim arreia sua mulher para a exhibir nos adros das igrejas, os outros podem suspeitar que elle a veste, á guiza de moira da procissão, para a mostrar bem adubada e apetitosa á cupidez dos outros.

–Se o sr. marquez pensasse como esses vilãos que assim pensam, eu sahiria da sua casa, com a magua de o não poder reptar ao baixo ponto em que está a honra dos plebeus—replicou Domingos Leite com altivez.

–Eu não penso assim—obviou o fidalgo—mas sei como os outros pensam.

–Quem são os outros? diz-m'o V. Ex.ª?

–Não denuncio, sr. Leite; advirto-o e mais nada. Vossa mercê conhece os livros; mas desconhece os homens. Tem grandes espiritos; mas possue imperfeitissima rasão. Guarde isto que lhe digo; e oxalá que eu nunca lh'o recorde.

–Sr. marquez!—volveu o secretario com vehemente arrebatamento—se minha mulher não é a honesta esposa que eu creio, diga-m'o; peço a V. Ex.ª pela sorte de suas filhas!

–Nada sei…—balbuciou o marquez, refreando a perturbação.

–V. Ex.ª está indeciso!—sobreveio Domingos Leite agitadissimo.

–Não seja louco!—objectou o velho, refazendo-se de apparente serenidade—Nada sei de sua mulher que o desdoure.

E, rematando o dialogo, o mordomo-mór disse que el-rei o esperava para o despacho.

Esta acerba palestra instillou peçonha no coração de Domingos Leite.

Havia um só homem e esse o mais indigno de todos com quem o marido de Maria Isabel desafogava a plenos pulmões: era Roque da Cunha, que, ao tempo, exercia um officio dos mais grados entre os aguasis de uma das corregedorias criminaes da corte, em recompensa de haver testemunhado em 1641 contra o general Mathias de Albuquerque, por industria e compra dos inimigos d'aquelle insigne cabo de guerra. E, bem que Mathias de Albuquerque provasse sua innocencia, D. João IV, tão presador dos denunciantes como dos bons e fieis generaes, não retirou a Roque da Cunha a paga da aleivosia. Parece que antevira a urgente necessidade d'aquelle homem…

Abriu sua alma Domingos Leite ao assassino de Pedro Barbosa, referindo-lhe o que passara com o marquez de Gouvêa, e terminando por lhe perguntar se ouvira qualquer calumnia contra a honestidade de sua mulher.

–Ouvi, respondeu friamente Roque.

–O que?! acudiu o outro sobresaltado e livido.

–Ouvi que antes de ser tua mulher tivera outros amores.

–Com quem? bradou arquejante Domingos Leite.

–Não perguntei. O calumniador disse a calumnia, e adormeceu na rua dos Romulares com dois bofetões puxados á sustancia, que lhe dei nos indignos focinhos.

–Nunca m'o disseste…

–Não sou echo de calumniadores, amigo Leite. Encarecer-te a minha amisade com a noticia dos bofetões, seria dar importancia a bagatellas. Se eu estivesse em sitio onde podesse arrancar-lhe a lingua, mandava-t'a embrulhada em uma folha de alface com a mesma facilidade com que t'o digo.

–Mas conheces esse homem?

–Conheci ha muitos annos: era parente de um official, ou quem quer que fosse de Miguel de Vasconcellos. Não lhe sei o nome, nem o tornei a ver desde ha dois annos. Morreria elle?… Se o matei com o primeiro murro, era escusado pregar-lhe o segundo…

Esta revelação attribulou Domingos Leite por tanta maneira, que Roque da Cunha chacoteava a irracional afflicção do seu amigo, chegando a dizer-lhe brutalmente:

–Homem! se este caso te faz tamanha mossa, parece que estás mais inclinado do que eu a acreditar a calumnia do tal que eu esmurracei! Em fim, tu lá sabes… concluiu faceiramente.

–Deixa-me… Olha que me estás fazendo perder a razão! atalhou o desvairado moço. Vê se me encontras esse homem, Roque! Pede-t'o a minha honra! dou-te por esse homem metade do que tenho! Se o tu não achares, ninguem o achará… Olha que me salvas, se m'o trazes! salvas o teu maior amigo!

–Irei procural-o no inferno, se o não achar cá em cimo. Confia nos quadrilheiros de todos os bairros de Lisboa. Saibamos: que queres tu do homem?

–O nome do amante que teve Maria Isabel antes de ser minha mulher.

–Então é coisa averiguada que teve? interpellou despejada, mas rasoavelmente o cynico.

–Perguntas-m'o!… balbuciou Leite Pereira.

–Não t'o pergunto: és tu que m'o dizes, homem! Seja como for. Apparecendo vivo o sujeito, queres interrogal-o, ou fias de mim desembuchar-lhe tudo que elle souber?

–Fio de ti a minha honra, que ha de sahir limpa d'essa prova, ou hei de lavar o ferrete com o sangue de alguem.

–Até mais ver, Domingos Leite. Dá-me tres dias e tres noutes. D'aqui até lá não tujas palavra que possa espantar a caça, percebes? Olha que as mulheres tem faro de tres narizes, quando não podem apresentar folha corrida ao almotacé do bairro da virtude.

Nos dias subsequentes, o secretario do marquez de Gouvêa, pretextando extraordinarios trabalhos, apenas pernoitava em casa; e, apesar de esforçada dissimulação, denunciou a Maria Isabel torvado animo e sobresaltos no dormitar. Interrogava-o ella amorosamente e com uns abalos de susto. Elle attribuia o seu dessocego a receios da causa da patria, visto que o exercito do Alemtejo soffria numerosas deserções, e perigava á mingua de generaes. No entanto, a esposa decifrara desgraça eminente em umas lagrimas que lhe vira toldar os olhos fitos no rosto angelico da filhinha adormecida. E perguntando-lhe então porque chorava, elle respondera que chorava em nome da creança a desventura de ter nascido.

Devoravam-no entretanto impaciencias de ouvir Roque da Cunha.

Chegou o mensageiro ao escriptorio de Domingos Leite, no palacio do conselheiro de estado, terminado o praso prescripto, e começou dizendo, com solemnidade e tristeza, coisas singulares e raras no seu caracter:

–Achei-o. Morava em Alfama, e tem loja de mercearia.

–Bem! exclamou Leite Pereira com um tregeito de ficticia alegria que poderia egualmente significar a angustia de uma noticia dilacerante.—Que diz elle?

–Vamos de passo. Indaguei primeiro quem tinham sido os officiaes da escrivaninha de Miguel de Vasconcellos. Nomearam-m'os todos; e eu, logo que ouvi o nome de um, recordei-me de que o homem em quem eu dera os cachações era parente do tal. Ora este tal, que foi muito da confiança do ministro, conhecia-o eu como as minhas mãos. Fui ter com elle, e sem detença soube que o seu parente era tendeiro. Isto no primeiro dia. No segundo, mandei-o chamar por um quadrilheiro á corregedoria. Carreguei a sêlha, e perguntei-o sobre o que havia dito a respeito da mulher do escrivão do civel, Domingos Leite Pereira, no anno de 1643, na praça dos Romulares. Como elle fingisse estar esquecido, lembrei-lhe os dois murros, e ajudei-lhe a memoria, promettendo-lhe mandal-o para o Limoeiro até se lembrar. Confessou então que, estando em um jantar de annos, onde o vinho sobejava e minguava o juizo, ouvira dizer a um dos do banquete, fallando-se no teu casamento, que elle conhecia um sujeito que, se não tivesse coroa rapada, a Maria Traga-Malhas e os dez mil cruzados não seriam para ti. E que mais? perguntei ao homem que engulira o principal. Não sei mais nada, respondeu elle. Chamei um aguazil e disse-lhe que levasse aquelle esquecidiço ao Limoeiro, e o trouxesse quando elle tivesse mais miudas lembranças do que ouviu n'um tal jantar. Deixou-se levar, e foi posto no segredo, e prohibido de fallar ou escrever a alguem. Segundo dia. Agora o terceiro, que é hoje. Ás duas da tarde pediu que o trouxessem á corregedoria. Recuperara a memoria. O homem que tinha coroa rapada, e se gabava de te disputar a noiva e os dez mil cruzados, era propriamente o primo d'elle, que eu conhecera official de Miguel de Vasconcellos.

–Como se chamava? atalhou Domingos Leite com os olhos abraseados e a respiração a trancos.

–Chamava-se o padre Luiz da Silveira.

–O que?… dize! Luiz da Silveira?! Esse padre foi o mestre de Maria Isabel… Basta!… Disseste tudo…—rugia Domingos Leite, regirando como fera prêza, de um lado a outro da saleta, e tomando o chapêo, apertou as mãos do informador, rugindo-lhe como em segredo:—Se eu precisar de ti, não me desampares… Bem sabes que eu só chamo amigo a quem me matar ou me restituir a honra n'esta horrivel conjunctura. Olha, escuta-me, Roque… Maria Isabel, antes de ser minha mulher, foi… Oh! como é atroz esta certeza!…

E, batendo com os punhos nas fontes, ringia os dentes, e istriavam-se-lhe os olhos de filamentos sanguinosos.

N'este comenos, ouviram-se os passos mesurados do marquez mordomo-mór no salão contiguo. Os dois amigos evadiram-se pressurosos escada abaixo.

V

O padre Luiz da Silveira viera da Alhandra para Lisboa, chamado pela fama de prégador, em 1635, tendo vinte e quatro annos de edade.

A marqueza de Montalvão deu-lhe capellania em sua casa, e accesso á estima dos fidalgos mais parciaes do rei castelhano. Os sermões de padre Luiz degeneravam, pelo ordinario, em arengas politicas em prol da legitimidade dos Filippes, e invectivas ironicas adversas aos sebastianistas. N'aquelle tempo, tanto os esperançados no vencido de Alcacer-kibir, como os imaginativos de rei portuguez, eram chanceados de sebastianistas.

Em casa da marqueza beijara o padre a mão do arcebispo de Braga, D. Sebastião de Mattos e Noronha, um dos mais esturrados sustentaculos do dominio hespanhol, e tão execrado dos portuguezes como Miguel de Vasconcellos.

Affeiçoou-se o arcebispo ao capellão da marqueza, ouvindo-o prégar no anniversario de Filippe IV, de Castella, e de moto proprio lhe offereceu o emprego honroso e lucrativo de official do secretario de Vasconcellos.

N'esta posição, e com promessas de boa prebenda na Sé lisbonense, o sobresaltou a revolução de 1640. Dormia elle ainda o somno do justo, quando o ministro era espostejado no terreiro do Paço da Ribeira. A consciencia remordia-o já com os delictos oratorios, já com os aggravos feitos aos seus compatriotas, sob a egide de ministro despota. Escondeu-se, portanto, no palacio do arcebispo de Braga, que os conjurados teriam morto, se rogos de D. Miguel de Almeida o não salvassem, e se D. João IV, receoso do clero e de Roma, lhe não desse parte no governo provisorio, defraudando de tamanha honra fidalgos que jogaram a cabeça, proclamando-o.

O arcebispo, inflexivel á indulgencia do rei, urdiu, travado com outros da sua estofa, a malograda contra-revolução, a fim de reconquistar a graça de Filippe IV.

Carteando-se com o conde-duque de Olivares, confiou a mensagem da correspondencia ao seu commensal, padre Luiz da Silveira, que tres vezes desempenhara destramente a perigosa empreza, disfarçado em almocreve.

Planeada a tentativa dos conjurados, de accordo com a Junta de Madrid, chamada da Intelligencia secreta, padre Luiz, ou por que desconfiasse do bom exito, ou por que um leicenço de infamia lhe apojasse na alma, ou—e seria o mais improvavel—porque o patriotismo o esporeasse, resolveu delatar os conspiradores a D. João IV.

Outra versão correu explicando a perfidia do padre. Disseram que elle, a fim de alliciar um antigo parceiro, communicara o segredo da conjuração a Luiz Pereira de Barros, que tambem servira Miguel de Vasconcellos, com grande applauso e confiança do ministro; porém Luiz de Barros, como a esse tempo já fosse contador da fazenda, a revellação do familiar do arcebispo recebeu-a sem enthusiasmo, promettendo, todavia, reflectir antes de se alistar nos conjurados. Mas, como quer que o clerigo desconfiasse que Pereira de Barros denunciasse a conspiração, deu-se elle pressa na precedencia da protervia e da paga. Não se illudira, por que D. João IV recebera os dois delatores no mesmo dia, e os enviara conjunctamente ao seu ministro Francisco de Lucena, e este os mandara ao procurador geral da coroa, Thomé Pinheiro da Veiga.

Simultaneamente, novas denuncias asseveraram a do confidente do arcebispo, umas espontaneas, outras arrancadas pela tortura. Dois capitães, Diogo de Brito e Belchior Corrêa de França, postos a tormento, confessaram os nomes dos cumplices; não assim o opulento mercador Pedro de Baeça que, desde o cavalête, em que lhe quebraram os ossos, até o verdugo bamboar-lhe o corpo dependurado, apenas fallou para offerecer trinta mil cruzados pela vida, mostrando até final, como bom mercador, que a vida tambem era mercadoria.

Não podemos attribuir especialmente á delação do clerigo o malôgro da revolta: tão obcecados de medo de Castella tremiam os conspiradores, que não viram o carrasco em casa, nem se arrecearam da irreflectida escolha dos cumplices. No entanto, os pormenores da revolução, que devia estalar no dia 5 de agosto de 1641, começando pelo incendio do Paço da Ribeira e assasinio do monarcha, deu-os o padre Luiz, taes quaes os sabia da confidencia plenissima do arcebispo de Braga.

A 28 de julho, a mais selecta porção de conjurados foi aferrolhada em diversos carceres; e a 28 de agosto soffreram decapitação na Praça do Rocio o marquez de Villa Real, o duque de Caminha, o conde de Armamar, e o escriptor D. Agostinho Manuel. Quanto aos outros padecentes, por que eram plebeus, as agonias estiraram-se mais prolongadas, desde o serem cavalleados pelo algoz, e d'ahi, como ignominia aos vilissimos cadaveres, começou a estupida ferocia de os arrastarem e esquartejarem.

O amigo do padre Luiz morreu nas masmorras de S. Julião da Barra; o bispo de Martyria acabou socegadamente no claustro de S. Vicente; o inquisidor-geral, D. Francisco de Castro, dois annos preso, sahiu perdoado e d'ahi a pouco reposto em todos os cargos e honras, depois de accusar, com a promessa do perdão, as particularidades do plano sedicioso. Este abjecto prelado, que merecera depois a estima de D. João IV, era esbofeteado, passados annos, pelo principe D. Theodosio, que o detestava como denunciante dos seus parceiros de infamia. (Nota 9.ª)

O padre Luiz da Silveira, dado que el-rei o recommendasse a D. Rodrigo da Cunha, arcebispo de Lisboa, não tinha ainda, em 1642, recebido condigno galardão, pois que n'esse tempo esbrugava apenas o escarnado osso de thesoureiro de S. Miguel de Alfama. O arcebispo D. Rodrigo da Cunha era homem honesto e verosimilmente despresador do fementido padre que prégara a legitimidade dos Filippes, e denunciara os seus co-reos na trama contra a liberdade da patria.

Retrocedamos dois annos na biographia d'este clerigo. Quando, em 1639, o tanoeiro João Bernardes Traga-malhas resolveu aperfeiçoar a sua filha em lettra e leitura, já quando a menina, por muito encorpada, corria perigo em andar na mestra, indagou como cauteloso pae onde houvesse um sacerdote ajustado ao intento.

Inculcaram-lhe padre Luiz da Silveira, a quem muitos fidalgos confiavam a educação de suas filhas.

Quiz o Traga-malhas julgar do clerigo pela cara, e desagradou-se da mocidade do mestre; porém, como pegassem de conversar a respeito da soltura do genero humano, o official do ministro Vasconcellos tamanhas lastimas gemeu sobre os peccados do mundo, que o bom João Bernardes ponderou a sua mulher que o mestre de Maria Isabel era o que elle nunca tinha visto em padres.

Teria vinte e oito annos, ao tempo, o capellão da marqueza de Montalvão. Bem apessoado, limpo no trajar, polido pelo trato da melhor sociedade, sisudo nas fallas, grave e composto com aquelle geito nobre que lhe dera o pulpito, padre Luiz fez-se, a um tempo, respeitar e estimar da discipula.

Do adiantamento da menina, em materia de escripta, leitura e doutrina, eram sensiveis os effeitos, e bem provada portanto a aptidão tanto do professor como da alumna.

Maria Isabel, que até então só conhecia em leitura a Primavera de Meninos, do Brochado, por conselho do novo mestre lia o Clarimundo, de João de Barros, e os Contos do Trancoso; e quanto a escripta, sahiu-se muito habilidosamente imitando os Exemplares de diversas sortes de lettras, de Manuel Barata.

Ora os paes, quando admiravam as rapidas sabensas da filha, graças á assiduidade do mestre, de certo não sentiam sobresaltos que lhes agorentassem a satisfação, lembrando-lhes que houvera no mundo uma discipula muito aproveitada, chamada Heloisa. Se na mente de padre Luiz chammejaram memorias historicas de Pedro Abeilard, e o demonio da imitação entrou com elle, é o que vamos deprehender do capitulo seguinte.

VI

Vimos, no capitulo IV, Domingos Leite e Roque da Cunha esquivarem-se rapidamente á presença do marquez de Gouvêa.

Ao separar-se, o allucinado escrivão murmurou sinistramente ao seu funesto amigo:

–Conto comtigo, Roque! Se algum de nós faltar ao que deve ao outro, esse seja infame!

–Seja!—assentiu o sicario de Pedro Barbosa, sacudindo-lhe a mão com a solemnidade cavalheirosa de um pacto de honra.

D'ali, de Pedroiços, onde o marquez residia, até Lisboa, Domingos Leite não desfitou as esporas dos ilhaes do cavallo. (Nota 10.ª)

Quando apeava no pateo de sua casa, vinha Maria Izabel, ao longo d'um corredor que conduzia ao jardim, com a menina no collo. A creancinha festejava o pai, batendo palmas, e exuberando de alegria no riso que tanto lhe brincava nos labios como nos olhos. Domingos fitou a mãe com torvo olhar, e apenas de relance olhou para a filha, como se o encaral-a de fito lhe traspassasse a alma.

–Olha a creancinha como se ri para ti!..—disse Maria Isabel entre meiga e atemorisada, já quando o marido galgava apressadamente as escadas.

Ella, apesar do susto que lhe arfava o coração, seguiu-o até á ante-camara. Ahi, Domingos Leite, voltando-se para a mulher, e repulsando as caricias da menina, disse-lhe com desabrimento:

–Largue a creança, e volte, que preciso fallar-lhe!

–Que modo de me tratar!—acudiu Maria—Tu que tens, Domingos? Que queres dizer-me? Podes fallar, que a tua filha não entende injurias, se m'as queres dizer…

A minha filha....—atalhou elle casquinando um froixo de riso por entre os dentes cerrados; e logo, arrugando a testa e alteando a cabeça com intimativa, bradou:

–Não me percebe!?

E, arrancando-lhe a filha do collo, sahiu com ella pendente dos braços, fechando a porta da ante-camara para que a mãe a não seguisse em gritos.

A creança, apesar do repellão, olhava para o pae com a mesma jovialidade. Domingos Leite, que parecia buscar a quem entregasse a menina, parou de repente, aconchegou-a do peito, beijou-a, lavou-a de lagrimas, e, soluçando no seio d'ella, queria talvez evitar que a mulher lhe ouvisse os gemidos. Deteve-se largo espaço assim, até que uma escrava, passando acaso, o surpresou n'aquelle lance. Como vexado da sua fraqueza, Leite Pereira entregou a menina á negra, e, enxugando o rosto, voltou ao quarto onde Maria Isabel estivera em rogos á Virgem, sem todavia saber que soccorros lhe cumpria pedir.

Entrou o marido, fechou-se por dentro, travou do pulso de Maria, empurrou-a para sobre um preguiceiro, sentou-se á beira d'ella, e disse:

–Porque treme? A innocencia não costuma assim tremer!… Porque treme?

–Pois eu vejo-te enfurecido sem saber que mal te fiz!… Sahiste de casa tão contente commigo…

–Quantas vezes a senhora escarneceu o contentamento com que eu sahia e entrava n'esta casa? Tinha alegria ou remorso de me enganar com juramentos sacrilegos, invocando o testemunho de Deus sobre a innocencia da sua vida de solteira?… Que responde?

–Voltas ás tuas suspeitas antigas…—balbuciou Maria Isabel, menos affoita do que tinha luctado n'aquella primeira noite.

–Não me irrite com referencias estupidas ás suspeitas antigas!—redarguiu o marido enfreando as arremettidas da raiva—Diga-me cá, barregan de clerigo, diga-me que conceito formou de mim, quando, depois de eu ter sahido d'aquella alcôva na primeira noite de meu deshonrado consorcio com uma manceba de padre Luiz da Silveira, voltei, passadas poucas horas, e me ajoelhei a seus pés, pedindo-lhe me perdoasse a injuria que fizera á sua puresa de menina solteira?

Maria Isabel soluçava uns gemidos que a estrangulavam. Elle arrancou-lhe as mãos do rosto, e bradou-lhe:

–Olhe para mim! Nada de momos! Responda: que juizo fez de mim n'este espaço de tres annos em que a tenho tratado com os extremos de noivo no primeiro dia da sua felicidade? Imaginou que eu fosse um vil, que se habituou á deshonra, a troco de vinte mil cruzados da sua infame mulher? Responda, que o seu silencio obriga-me a arrancar-lhe do coração a resposta!

–Não…

–Não… o quê?..

–Eu nunca te suppuz vil…

–Suppoz-me então enganado?…

–Enganado… não…

–Então, vil… uma das duas coisas… Em que ficamos: vil, conformado com a deshonra, ou enganado, isto é, persuadido de que tinha casado com uma mulher honesta?

–Meu Deus!—exclamou ella afflictissima—Matae-me, Senhor!—e punha os olhos sinceramente supplicantes na imagem de Jesus.

–Pois que suppunha?—insistiu Domingos Leite—Cuidou que a sua devassa mocidade seria segredo entre Deus e o padre? Nunca lhe gelaram terrores a alma, prevendo que um acaso viria explicar a rasão que eu tive para a injuriar poucas horas depois que lhe dei o meu nome honrado e a minha vida sem mancha? A senhora deve ter tido remorsos de mentir tão torpemente a um homem que tinha direito a encontrar esposa honrada! Bem sabia que eu não era marido que se vendesse, e trocasse a ignominia da pobresa pela ignominia de uma manceba de clerigo com alguns mil cruzados. Quem a privou de me dizer, quando fallou a só commigo; que na sua vida havia desaires que a prohibiam de amar um homem de bem? Recorde-se… Não lhe disse eu que, apesar de lhe querer com toda a alma d'um primeiro amor, como não acreditava na efficacia dos meus meritos, reflectisse antes de me acceitar como marido, e não viesse para os meus braços com o mais pequeno affecto sacrificado á vontade de seus paes?

Maria Isabel prostrou-se aos pés do marido, exclamando:

–Foi verdade…

–Foi verdade!… e a senhora mentiu-me, cobriu-me de lama, fez-me o successor indissoluvel do padre!.. E que sou eu então diante de si e diante do mundo? A irrisão dos meus inimigos, e a compaixão aviltadora dos meus amigos!…

E, levantando-se de golpe, sacudiu phreneticamente a mulher, que lhe abraçava os joelhos, e, dados alguns passos, parou em frente d'ella, cruzou os braços, e rouquejou convulsamente:

–Ó miseravel! pôde assim, formosa e rica, aos quatorze ou quinze annos, resvalar á voragem das loureiras secretas por entre os braços d'um padre! Amou-o? diga, mulher impudica, amou-o?

–Pelas chagas de Jesus Christo!—volveu ella, ajoelhando-se-lhe novamente—Eu sei que vou morrer… Se me tu não matares, heide eu matar-me!. Ai! minha querida filha!… Ó Domingos, não desampares aquella creancinha que é tua filha!…

–Matar-se!—replicou sarcasticamente—As mulheres na sua condição não se matam, porque… estão mortas… Quem teve a coragem de se deshonrar perdeu a força moral que dá a rehabilitação…

–Eu era uma innocente…—soluçou Maria Isabel—Não sabia o que era deshonra… Passára a minha infancia entre meus paes. Minha mãe era tão virtuosa que nem me precaveu contra a maldade do mundo…

E, como os arrancos lhe embargassem a voz, o marido, que parecia ferozmente interessado na confidencia, disse:

–Continue… Vae-me contar por miudos a historia da sua… queda… Conte.

–Oh!.. pelo divino amor de Deus!—clamou ella—que queres saber d'esta desgraçada?… Eu só soube que estava perdida, quando te amei, porque então senti que era indigna do teu amor!..

–E não obstante… diga o mais… Conhecendo-se indigna, fez-me descer na rampa da infamia para me nivelar com a senhora!..

–Pois bem!—bradou ella com vehemente resolução—Esmague-me, que eu sou punida, e o senhor vingado!

–Heide reflectir…—retrocou Domingos Leite serenamente—Nem todas as mulheres são dignas de morrerem ás mãos de homens honrados. Entretanto, dê-me o infernal praser de lhe ouvir contar a historia dos seus primeiros amores.

E, dizendo, sentou-se, indicando-lhe com um tregeito de cabeça que se assentasse a seu lado. Ella hesitou; mas um arremêsso de impaciencia, e duas fortes punhadas que elle deu no espaldar do preguiceiro, incutiram no animo de Maria Isabel a suspeita de não sahir com vida de tamanha angustia.

Sentou-se ella, a tremer, com as mãos cruzadas sobre o peito e os olhos piedosos fitos no perfil do marido.

–Conte lá,—disse elle com os cotovellos apoiados nas pernas, a face entre as mãos, e os olhos postos no pavimento—conte desde o principio essa historia… Como foi que o padre lhe fez saber que a desejava, e como foi que a menina de quinze annos acceitou as doutrinas do mestre.

O dialogo seguido a esta intimação demorou-se meia hora, que devia figurar-se um dia de tormentos a Maria Isabel: tão dilacerantes cortavam as perguntas no pudor d'aquella mulher.

Porém, finalmente, no rosto de Domingos Leite Pereira já vislumbravam sentimentos de compaixão, porque os do rancor tinham posto a pontaria em outro alvo.

As ultimas palavras d'elle, proferidas com gravidade, mas sem tom de ira, foram estas:

–D'hora em diante eu continuo a ser seu marido perante o mundo; mas diante da senhora sou um estranho. Emquanto a mãe de minha filha assim quizer viver commigo, essa creança, que eu adoro, será sua tambem; mas, se este viver lhe não quadrar, eu sahirei com minha filha; e farei que ella nunca saiba quem foi sua mãe. Esta sentença não condemna o delicto da sua impuresa; condemna o enorme crime de me ter acceitado como marido. Concorda na minha proposta?

–Sim… concordo… Eu viverei como tua criada, se assim o quizeres; mas não me tires a minha filha.

–Retire esse tratamento do tu—voltou o marido com sobrecenho.—Nem uma palavra, nem um gesto que indique a maior ou menor alliança de duas almas que se estimaram, ou tredamente se dissimularam… Esta casa é bastante grande. Podem viver n'ella duas pessoas sem se encontrarem. A senhora é rica: administre o que tem: eu não tenho nada que vêr com os seus bens de fortuna. Ficamos entendidos. Qualquer infracção d'este pacto, estalará em tempestade sem bonança.

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