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VII

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OS TRÊS PERSONAGENS que o conde de Trava vira encaminharem-se para a corredoura contígua aos muros do castelo, e cujos passos e conversação mandara observar pelo pajem, iam demasiado preocupados para haverem de reparar nos jogos e brincos de Tructesindo e dos seus companheiros; e tanto mais que na viela perpassavam também às vezes os ovençais, uchões e sergentes ocupados nos preparativos do banquete, tornando assim menos notável a pessoa do pajem, cujas feições, até, já não seria fácil divisar na estreita passagem, a certa distância, e à luz duvidosa do longo crepúsculo, que no Verão vem após o sol-posto, e que era a hora a que esta cena se passava.

Essa claridade do fim da tarde seria contudo ainda bastante forte para o Lidador e Fr. Hilarião conhecerem o mensageiro que os buscava, se não fora o grande capuz do zorame, onde tinha como sumido o rosto, do qual apenas eram bem visíveis dois olhos brilhantes e uma espessa barba loura. Quase ao mesmo tempo os dois haviam chegado ao pé do desconhecido, e lhe tinham perguntado de onde vinha e quem o mandava. A resposta do peão foi tirar um pequeno rolo de pergaminho, atado com fio negro, de uma bolsa de couro que trazia pendente do cinto, e pô-lo nas mãos de Gonçalo Mendes.

O Lidador recebeu a carta e perguntou de novo:

— Mas quem te mandou, peão?

— Um cavaleiro português - respondeu o desconhecido - que encontrei mui malferido na albergaria dos hospitalários em Gaza. O triste e cativo quase que se morria.

Estas palavras excitaram ao mesmo tempo curiosidade e receios no espírito de Gonçalo Mendes; e quebrando rapidamente o fio negro entregou a carta a Fr. Hilarião, dizendo-lhe:

— Como a vós vem também a mensagem, lereis esses riscos pretos que aí estão. Por minha boa espada! cousa é que nunca entendi.

Não era raridade: quase toda a fidalguia de então se podia gabar de outro tanto.

Fr. Hilarião desenrolou o pequeno pergaminho e começou a ler. Entretanto o Lidador fitou os olhos no peão, cuja voz lhe pareceu ter já muitas vezes ouvido.

— Pobre mancebo! - exclamou o abade, trémulo e empalidecendo.

— Quem? - interrompeu Gonçalo Mendes voltando-se para ele sobressaltado.

— Um cavaleiro - replicou Fr. Hilarião - que amei como filho; e que o desejo de oferecer à dama que requestava um nome glorioso levou à Palestina. Só talvez eu soube a causa da sua partida, de que muitas vezes tentei dissuadi-lo; porque previa o que sucedeu. Oh, que enquanto o pobre trovador assim morria por Dulce, ela folgava em seus novos amores com Garcia Bermudes. - Mulheres, mulheres!

— Egas Moniz é, pois, morto? - interrompeu tristemente o Lidador, que das palavras do abade conhecera de quem era a carta. - Mensageiro, que dizes tu? Sabes certo que é finado?

Um gemido involuntário do peão, que recuara ouvindo as palavras do abade, fora a causa desta pergunta.

— Digo-vos, senhor - tornou o peão com voz afogada - que ora é ele morto.

Mas o cavaleiro não reparou na sua perturbação: o monge começava a ler alto o pergaminho que tinha nas mãos. A mágoa do Lidador era profunda; porque a sua afeição por Egas fora constante e sincera. Pôs-se a escutá-lo, e, bem como ao velho Fr. Hilarião, as lágrimas lhe rolaram pelas faces.

— "Escrevo-te, Gonçalo Mendes - lia o abade -, nas vésperas talvez de morrer. Deus porventura não quer que meus olhos tornem a ver o lugar onde nasci. Novas são aqui vindas de que Fernando Peres de Trava tem reduzido à condição de vassalo o nobre filho de meu senhor, o conde Henrique. Criei-me com o infante: sei que ele não o sofrerá largo tempo, nem os ricos-homens de Portugal

O sofrerão também. A minha espada pertence àquele de quem a recebi em Zamora: resolvi-me por isso a atravessar os mares. Um recontro com os infiéis me cortou, porém, os passos. Tu, Lidador, acorrerás ao infante melhor que o seu Egas, que é o seu irmão de armas. Cem lanças, entre acostados e homens de tuas honras, podes pôr em seu campo: eu a custo lhe levaria cinquenta. E, além disso, não vale a tua espada dez vezes mais que a minha? Se a guerra for começada sei certo que já estarás com D. Afonso. Um pobre romeiro português me jurou sobre a cruz dar-te esta carta onde quer que te encontrasse. Faze-lhe mercê por minha alma."

Durante a leitura do pergaminho, humedecido pelas lágrimas do velho, o desconhecido havia procurado conter as paixões que lhe agitavam o espírito. Gonçalo Mendes ficara em silêncio, apertando com a mão a fronte. O homem do zorame dirigiu-se então ao abade:

— Quanto a vós, venerável monge, o nobre cavalheiro me ordenou vos buscasse em vosso mosteiro; que vos pedisse um trintário cerrado de vossos frades, e que vos lembrásseis dele em vossas orações. Agora que mandais de mim?

— Vais partir? - perguntou o Lidador, com um tom em que parecia revelar-se a desconfiança.

— Já - tornou o romeiro. - É noite; e não sei ainda se é longe se perto o termo da minha jornada.

E de feito havia anoitecido: os paços começavam a iluminar-se,

E os candelabros e tochas vertiam através das frestas e balcões dos aposentos reais uma luz brilhante, cujos raios batiam de chapa no vulto rebuçado do mensageiro. O cavaleiro e o monge olhavam fitos para ele. Depois Gonçalo Mendes disse algumas palavras ao ouvido de Fr. Hilarião, e prosseguiu o seu interrogatório:

— Para onde, pois, te diriges? - disse ele ao desconhecido, hesitando, e como quem já a custo continha na alma bem diversos pensamentos.

— Para onde Egas Moniz - respondeu com veemência o homem do zorame - cria que eu vos encontrasse, meu senhor cavaleiro: para o campo de D. Afonso. Peão como sou, irei pelejar por ele, que é meu senhor natural. Que os ricos-homens folguem entretanto nos paços onde estranhos governam, onde D. Teresa se esquece de que

O infante é filho de D. Henrique.

Então Gonçalo Mendes, fazendo recuar o capuz que cobria a cabeça do suposto mensageiro, olhou para ele alguns instantes. À luz nocturna que o alumiava reconheceu-o então. As suas vivas suspeitas se haviam realizado.

— Egas! Egas! - exclamou, apertando-o ao peito - pensavas que o som da tua voz podia nunca esquecer-me? Como ousaste assim entrar em Guimarães; tu, sobrinho do senhor de Cresconde; tu, um dos da linhagem de Riba de Douro?... Para quê esta carta cruel que veio arrancar lágrimas ao bom Fr. Hilarião, que te ama como um filho? Cria-te ainda na Síria.

— De lá cheguei há poucos dias - respondeu o mancebo, lançando um dos braços à roda do pescoço do velho monge, que tentava também abraçá-lo chorando, mas de contentamento. - Às primeiras novas de que o infante e os infanções de Portugal tentavam sacudir o jugo do conde de Trava dirigi-me ao arraial de D. Afonso que se encaminhava para aqui. Lá o teu nome era afrontado com o título de desleal pelos teus inimigos. Estavas em Guimarães: as aparências condenavam-te, e o meu coração padecia. Vim pois dizer-te: "Lidador, é tempo de combater!" Queria, porém, saber primeiro se as minhas palavras tinham na tua alma a mesma força que dantes; queria saber se a tua amizade havia expirado como o amor de Dulce, que eu já sabia se esquecera de mim: foi para isso esta carta. Sei agora ao certo que ainda te posso dar o suave nome de amigo; sei enfim que amizade dura mais que o amor. Vós - acrescentou ele voltando-se para o monge - perdoais-me por certo a mágoa que vos causei!

— Oh, meu filho, meu filho! - replicou Fr. Hilarião - para que vieste expor-te à vingança de Fernando Peres, que mortalmente odeia a linhagem de Riba de Douro? Podias tu duvidar da lealdade do mais generoso e valente dos ricos-homens de Portugal?

— Não; mas era necessário que pudesse dizer aos que de desleal o acusam: "Vós mentis, e sobre isso porei meu corpo e mentis porque de sua boca ouvi eu que na hora do combate o seu pendão se hasteará junto da signa do infante". Não direi nisso a verdade, meu bom e leal cavaleiro?

— Egas - respondeu o Lidador -, que te importam a ti ou a mim os ditos de alguns sandeus? Quando eles ousarem vir a Guimarães dizer o que ainda hoje Gonçalo Mendes disse na cúria ao conde de Trava, tê-los-ei então por mais esforçados e mais leais do que ele.

Até o fim procurei evitar esta guerra atroz de irmãos. Perdi a derradeira esperança. Agora volta ao arraial; e podes afirmar a Afonso Henriques que dentro de dois dias oitenta homens de armas e sessenta besteiros da terra da Maia estarão no seu arraial. Dize-lhe mais que o traidor Gonçalo Mendes espera com vinte cavaleiros que ele chegue para se unir a seus pendões, não de noite como salteador covarde, mas à luz do meio-dia, em que pese ao conde de Trava.

A indignação do rico-homem rompera como torrente; o monge, porém, confrangia-se, lembrando-se do perigo a que se expusera o imprudente Egas Moniz. Assim, interrompendo-o, disse ao mancebo:

— É necessário que partas já. No meio do ruído e confusão do banquete; entre a multidão de gente que vagueia ainda pelo castelo e pelo burgo ninguém te conhecerá. Mas qualquer imprudência pode perder-te: qualquer imprudência!... Repara bem, Egas. Estes paços encerram para ti a morte.

Eram o amor e o ciúme do moço trovador que o bom do monge mais receava. Sabia quanto ele amava Dulce: conhecia a violência das suas paixões, e que a do ciúme devia ser terrível naquele coração. Porventura o motivo da sua vinda a Guimarães não fora só o que dizia. Estas ideias, que de golpe tinham ocorrido a Fr. Hilarião, lhe faziam desejar com tanto afinco a partida breve do cavaleiro.

— Não sei porque a minha vida periga dentro destes muros - replicou Egas Moniz. - Há mui poucos dias que cheguei a Portugal; e o conde de Trava não sabe se o meu balção flutua no arraial do infante...

— Esqueceste depressa na Terra Santa - interrompeu o monge - que quando há um cadáver de assassinado entre família e família, a vingança, segundo o brutal foro de Espanha, que os santos cânones ainda não puderam destruir, dura de pais a filhos; convoca, sobe pena de desonra, todos os parentes do morto e do assassino a lides atrozes e a ódios implacáveis. A linhagem de Riba de Douro segue toda os pendões do infante. O conde folgaria com que a de Trava e Trastâmara fosse chamada a defender os dele pela voz imperiosa do que ricos-homens e infanções crêem brio e dever. Lembra-te, meu filho, da linhagem a que pertences, de que o conde é homem feroz, e que tu serias uma vítima ilustre para pretexto de perpétua guerra de homizio entre Portugal e Ganza.

O mancebo ficou por algum tempo pensativo e murmurou:

— Cumprir-se-á meu destino! - Depois voltando-se para o abade disse-lhe: - Ficai tranquilo, bom Fr. Hilarião, esta mesma noite sairei de Guimarães.

— E breve! - acudiu o Lidador. - O esforço não exclui a prudência. Se todavia alguém tentar embargar-te os passos, não te esqueças de que Gonçalo Mendes está aqui, e que tem consigo vinte escudeiros valentes.

Neste instante as trombetas tocavam pelos eirados do paço e pelos adarves do castelo, e ouviam-se romper da banda da sala de armas os sons ásperos e vibrantes das charamelas.

— É o sinal de que começa o banquete - notou o abade, a quem semelhantes sons eram suaves, ainda nas maiores angústias. - É necessário apresentarmo-nos a tempo, para não causarmos suspeitas.

Egas apertou a mão ao Lidador, abraçou o monge, e, puxando o capuz do zorame para diante, seguiu ao longo da viela, enquanto os dois retrocediam e se encaminhavam para a escada principal do palácio, com passos lentos e conversando em voz baixa. Antes de chegarem acima, viram passar por eles um pajem galgando os degraus quatro a quatro e rindo como um perdido.

— Estes rapazes são doidos! - disse o monge para o seu companheiro de modo que o pajem o ouvisse.

Este olhou para trás, fitou os olhos em Fr. Hilarião com gravidade cómica, e deu uma gargalhada, continuando a galgar a escadaria.

Era Tructesindo.

VIII

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APENAS FR. HILARIÃO e o Lidador voltaram costas para se dirigirem à sala do banquete, na qual se achavam reunidos já quase todos os ricos-homens e infanções vindos à solenidade daquele dia, o cavaleiro cruzado se encaminhou apressadamente ao longo da corredoura onde falara com eles. Aquela passagem estreita ia por todo o circuito do castelo, acompanhando o edifício irregular dos paços e suas acomodações e oficinas. De espaço a espaço alargava-se nuns terreirinhos onde se viam amontoados instrumentos e arremessos de guerra. Para esta espécie de pátio desciam escadas de pedra que davam comunicação aos adarves ou andaimos da grossa muralha exterior, e ao lado de cada um deles bojavam para dentro as torres maciças e quadrangulares que defendiam as quadrelas do muro. Nesse ponto a senda, geralmente estreita e soturna, se tornava ainda mais apertada, e às vezes mais tenebrosa, porque algumas das torres se ligavam ao palácio por largos passadiços lançados por cima dela.

Egas Moniz passou sucessivamente três dos terreirinhos, até que afinal parou debaixo do escuro arco de pedra, que se abria na extremidade do terceiro. Este, diferente dos outros, em vez de topar nas lisas e altas paredes dos paços, entestava com uma casaria baixa, rota por sete ou oito portais singelos que davam para o terreiro. O tecto daquele corpo saliente era um espaçoso terrado que o passadiço ligava com o primeiro andar da torre. Sobre esse terrado, quanto a escuridão o permitia, viam-se negrejar os topos dos arbustos e as pontas esguias dos caramanchões de verdura, e sentia-se o cheiro balsâmico das flores, que se dilatava na aragem quase imperceptível de uma noite de Estio. O cavaleiro achava-se junto ao jardim onde se passara, pouco havia, a cena que tão fatais resultados tivera para o honrado e jovial Dom Bibas.

Tudo por aquele lado do palácio parecia tranquilo, e o reflexo da luz escassa que alumiava os aposentos contíguos ao piso do jardim, rompendo a custo as vivas cores das vidraças, vinha morrer nas trevas a pouca distância delas. O cavaleiro, ao atravessar o terreirinho, parara um momento e cravara os olhos naquela ténue claridade. Um suspiro mal contido lhe sussurrou nos lábios. Depois, como arrastado por um pensamento irresistível, continuou a caminhar rápido para o escuro vão junto da torre, e envolto no zorame coseu-se com a parede, como quem receava ser ali visto.

Não tardou que do lado da corredoura, oposto àquele por onde o cavaleiro viera, se aproximasse um vulto trazendo um cavalo de rédea. Este vulto vinha também coberto de uma espécie de zorame, porém alvacento como albornoz mourisco. Deu um silvo agudo, a cujo soído Egas pareceu reconhecê-lo, porque, saindo-lhe ao encontro, perguntou em voz baixa e em árabe:

— És tu, Abul-Hassan?

— É o vosso servo - respondeu o vulto na mesma língua, parando e sofreando o cavalo.

— Falaste com teu irmão? A que horas se erguem as pontes das barbacãs? - perguntou de novo o cavaleiro.

— Apenas acabar o banquete - tornou o mouro. - Os vigias receberam ordem para não deixarem sair ninguém do burgo passado esse momento.

— O meu saio de malha - prosseguiu Egas -, a cervilheira e a espada?

Sem dizer palavra, Abul-Hassan tirou as três peças de sob o albornoz. O cavaleiro vestiu à pressa o saio, pôs na cabeça a cervilheira, afivelou sobre os ombros aquela espécie de camisa de ferro que vestira, cingiu sobre esta a espada, e, atirando o zorame para cima do cavalo, disse ao mouro:

— Deixa-te aí ficar. Se vier alguém que te não conheça e pergunte o que és e o que fazes neste sítio, responde que és um cavalariço do senhor de Trava, que te ordenou esperasses aqui com um corredor folgado. Depois de assim responderes ninguém ousará perguntar-te mais nada.

Proferidas estas palavras, Egas desapareceu numa escada de caracol aberta no fundo da torre, e que dizia para o primeiro pavimento dela. Chegado ao alto tirou do seio uma chave e abriu uma porta, não a que dava para a quadra principal da torre, mas outra lateral e pequena. Cruzou o passadiço, e num momento achou-se no jardim pênsil.

Naquele lugar e hora, as paixões tumultuosas que lhe agitavam o espírito o obrigaram a reflectir alguns momentos, e a procurar restabelecer no seu coração a possível tranquilidade. Que pretendia? A que vinha ali como um salteador nocturno? Ele mesmo não o sabia ao certo. Era apenas uma vaga esperança de ainda ver Dulce, de lhe exprobrar a sua leviandade, de lhe dizer tudo quanto o ciúme e a desesperação lhe ensinassem. Desde que a fama dos amores da donzela com Garcia Bermudes chegara aos seus ouvidos, não houvera para ele repousar um instante. Buscando qualquer pretexto plausível para se dirigir a Guimarães, logo que chegara ao arraial do infante se oferecera para indagar da própria boca de Gonçalo Mendes qual seria a sua resolução final na luta que se ia travar. Vestindo os trajos de vilão - o arbim e o zorame de burel - entrara no burgo ao romper de alva, e dirigindo-se à mouraria perguntara por Abul-Hassan. Entre os mouros que, ao tirar a grossa cadeia de ferro lançada de noite à entrada do seu bairro, saíam de golpe para os trabalhos rurais, divisou brevemente aquele que buscava. Deu-se-lhe a conhecer, e antes que a alegria que o mouro mostrou ao vê-lo se revelasse por sinais que gerassem desconfianças, pediu-lhe o guiasse à sua pousada. Aí, entregando-lhe uma bolsa de couro com alguns almorabitinos, disse-lhe:

— Far-me-ás tu, Abul-Hassan, ainda uma vez o serviço que tantas te devi antes de partir para o ultramar?

— Posto que o ódio contra os meus irmãos - respondeu sorrindo

O árabe - vos levasse tão longe para lhes derramar o sangue, como se vos não bastasse o dos muslins da Espanha, nem por isso vos perdi a afeição, porque sei por experiência que ao menos não seríeis cruel para com os vencidos, como são quase todos os guerreiros cristãos. O serviço de que me falais, sem que mo dissésseis, já eu o adivinhei. A chave da porta secreta da torre do miradouro ainda está em meu poder, porque ainda me não tiraram o cargo do jardim da rainha. À hora da quinta oração podeis vir buscá-la aqui.

— Não é isso só - interrompeu o cavaleiro -; é necessário que ainda hoje vás ao soveral que se estende junto ao vau do Avicela. Aí estará um escudeiro com o meu cavalo de batalha e as minhas armas: mostrando-lhe este anel, ele te entregará tudo. Conduze-me aqui o ginete e as armas ao cair do dia. Depois esperar-me-ás junto ao passadiço da torre para o jardim. O anel, esse, guardá-lo-ás para ti.

Abul-Hassan ia propor algumas dificuldades: as últimas palavras de Egas Moniz as haviam aplanado. O anel era assaz rico.

— Na confusão que hoje vai em palácio, ninguém reparará na minha falta. Assim poderei obedecer-vos.

— Ainda mais - prosseguiu o cavaleiro. - Quando atravessei a barbacã vi sinais de que as pontes levadiças se costumam erguer de noite. Preciso de saber até quando se poderá sair do burgo e por onde. Tu o indagarás com certeza. Se desempenhares bem tudo o que te ordeno, recolherás depois mais larga recompensa.

No rosto do mouro ria o contentamento.

— Meu irmão, o tornadiço ainda é um dos mestres dos trons e engenhos. Estão a seu cargo os que de novo se assentaram no cubelo do topo da couraça. Ele deve sabê-lo; e há-de por certo dizer-mo.

— Bem! - tornou Egas. - Agora vai executar o que te mandei, e entretanto eu ficarei aqui. Mas volta ao sol-posto; porque me será necessário a essas horas deixar a tua guarida.

Daí a pouco o mouro atravessava a barbacã por meio da comitiva de ricos-homens que começavam a entrar no burgo para assistirem à convocação solene da cúria.

Havia largos anos que Abul-Hassan estava incumbido do jar-dim pênsil. Naquele século os diferentes misteres, para os quais se requeria ou ciência ou indústria, eram quase exclusivamente exercitados por mouros e judeus. Na agricultura, porém, a raça árabe era a única entre a qual se encontravam homens profundamente versados em todos os ramos dela. Abul-Hassan, cativo em uma arrancada, obtivera pela sua ciência agronómica não só um tratamento menos duro do que era usual entre os cristãos para com os servos, mas até por fim a liberdade, e com a liberdade um cargo que se casava com a sua educação e hábitos - o de jardineiro do horto pênsil. O toque principal do carácter de Abul-Hassan era a avareza: à força de ouro Egas alcançara dele muitas vezes antes de partir para a Terra Santa o ter entrada naquele lugar vedado, onde podia ver Dulce, quando ou as noites festivas ou os cuidados do governo retinham D. Teresa longe de sua filha adoptiva. A experiência que tinha do poder do ouro na alma de Abul-Hassan fez com que entrando em Guimarães o buscasse, para com o socorro dele poder levar a cabo o principal intento que ali o trouxera.

Tais haviam sido os meios de que usara o cavaleiro para se aproximar de Dulce. Por este modo era que ele se achava ali.

A recordação dessa época em que naquele mesmo sítio passara horas deliciosas aos pés da sua amante, que então inocente e pura era para ele como o anjo de Deus, que inspirava ao cavaleiro esforço e generosidade, e ao trovador os seus mais poéticos e harmónicos cantares; essa recordação, dizemos, devorava agora como um pensamento infernal o coração do pobre mancebo. Os riscos que naquele tempo dourado correra para ouvir promessas e juramentos de amor, palavras de esperança e de felicidade, ia-os correr de novo para receber talvez o último desengano. Que lhe importava? Sem ao menos ver uma vez Dulce é que ele não podia morrer. Morrer - que, traído, lhe seria a consolação derradeira!

Egas se havia dirigido ao mesmo lugar onde poucas horas antes o conde de Trava ouvira da boca de Garcia Bermudes as desagradáveis novas da aproximação do infante. O reflexo do tanque em que as estrelas se espelhavam guiara o cavaleiro para aquele sítio. Pelas ruas tortuosas que giravam por meio dos arbustos, e por entre os canteiros das flores, Egas chegara junto ao poial escondido no caramanchão fechado. Em vez de se acalmar a agitação que lhe despedaçava o coração, este bateu com mais violência ao entrar ali. Tudo estava como dantes, o céu, a noite, o jardim: só um amor de mulher mudara: mas esse amor fora para ele o universo, e o que via em redor de si não era mais que uma imagem mentirosa da realidade, lançada sobre o túmulo do passado, sobre as ruínas da sua íntima existência. Nas recordações de outrora havia para ele indizível saudade, mas saudade árida e atroz, sem consolação nem lágrimas.

Assentado no poial, com a fronte entre os punhos, o pobre trovador, engolfado em pensamentos tenebrosos, parecia esquecido dos seus próprios intentos, do tempo que fugia, e dos riscos que o cercavam, quando, no meio do silêncio profundo que reinava no jardim, um ténue ruído veio despertá-lo da imobilidade externa em que o lançara o intenso viver da sua alma.

Este ruído o fez erguer a cabeça e lançar os olhos para o lado donde partia aquele som duvidoso: defronte dele, e bem perto, uma porta rodava lentamente sobre os gonzos; era a do corredor que dava para a sala de armas. Egas pôs-se em pé, e apalpou o punho da espada. Lembrava-se perfeitamente de uma noite - fazia nesta três anos - em que assim a vira abrir, e passar um cavaleiro, cujo vulto semelhava o do conde de Trava. Esta noite lhe ficara gravada indelevelmente na memória, porque fora aquela em que vira Dulce pela última vez, partindo para o Oriente. A dois passos deles se aproximara o vulto encaminhando-se lento para os aposentos reais. Egas recordava-se bem desse instante de receio e delícias, em que na mão de Dulce unida aos seus lábios sentira palpitar o amor e o susto; em que ele vira cruzar-lhe o delírio celeste da felicidade à imagem de um assassínio. Agora esta imagem, então negra e maldita, como que lhe sorria, porque não se misturava com ideias de ventura, mas com as agonias da desesperação. Daquela vez um suor frio lhe manara da fronte ao arrancar o punhal do cinto: desta o seu espírito quase folgava ao imaginar que alguém se encaminhava para ali da sala de armas, e que ele tinha uma espada. Talvez Dulce aqui mesmo jurara a outro o amor que lhe mentira a ele! Talvez o seu rival a buscava!... Refugiu deste pensamento; porque era um pensamento que parecia esmagar-lhe o coração.

Enquanto tudo isto indistinto, travado, doloroso, fugia pela sua alma com mais rapidez do que nós o exprimimos, a porta em que o cavaleiro tinha os olhos fitos, através da ramagem do caramanchão, acabou de rodar nos gonzos, e um vulto saiu para o jardim. A figura e o trajo eram de mulher. O seu andar vagaroso e incerto, o arquejar comprimido, o volver contínuo do rosto, como quem observava se era seguida, davam claros sinais da viva inquietação que a agitava. Trazia vestido singelamente um epitógio escuro, e os cabelos envoltos em rede tenuíssima de ouro. À escassa claridade, que derramava longínquo fulgir das estrelas, aquele vulto de mulher semelhava-se a um anjo perdido nas trevas do mundo e da noite, tanto as suas formas eram suaves e ao mesmo tempo severas, os seus meneios nobres e modestos. O cavaleiro olhou mais atentamente... Era Dulce! Um grito de amor, de cólera, de prazer, de indignação, conglobados em gemido infernal, esteve a ponto de lhe fugir por entre os dentes cerrados: mas uma vontade de ferro conteve aquele primeiro impulso. Dulce havia parado.

E parara bem perto dele! Egas aspirava o perfume de seus cabelos, cria ouvir-lhe o cicio do respirar, o ranger das roupas negras, e nos olhos o brilho de uma lágrima. Escutou. A donzela alçou a fronte para o céu e murmurou:

— Desventurado! desventurado!

O trovador descobriu nestas palavras a angústia do remorso: era por certo o remorso quem arrancara esta expressão de piedade àquela que o traíra. Quem havia aí, senão ele, que fosse desventurado?

— Toda a afeição de uma irmã eu guardarei para ti - prosseguiu Dulce. Hei-de cumprir essa promessa que fiz perante o Senhor que me ouve! Mas o meu amor é já de outrem: como o repartirei contigo?

A donzela parecia delirar: tinha os braços estendidos e as mãos unidas como implorando a piedade de algum ente só para ela visível.

Nesta postura, à luz duvidosa da noite, em silêncio profundo, e no meio de atmosfera recendente e tépida agitada por leve aragem de Estio, a fascinação do amor era irresistível.

Aquela espécie de delírio em que Dulce caíra trocou-se repentinamente em impensada realidade. Um leve rugir de folhas secas a despertou do seu devaneio. No mesmo momento um cavaleiro coberto de saio e cervilheira de malha estava a seus pés, e segurando-lhe trémulo uma das mãos lha cobria de beijos ardentes.

Todo o ciúme, toda a procela, acumulada por dias de intenso martírio no coração de Egas, desaparecera.

— Meu Deus! - quis bradar Dulce, aterrada. Os lábios não puderam todavia repeti-lo.

Mas instintivamente recuara.

O encanto que havia subjugado por um instante o mancebo quebrou-se então: a sua alma reconquistou o esforço da desesperação, que tão de súbito o abandonara.

Ergueu-se e recuou também; mas em pé, e cruzando os braços, olhou para a pupila de D. Teresa como o juiz para um réu.

— Faz agora três anos e um dia - disse ele com voz lenta e na aparência tranquila - que neste mesmo lugar te jurei estar hoje aqui a teus pés! Meus juramentos cumpriram-se. Dulce, lembras-te dos teus?

— Meu Deus! Egas! tu aqui? Oh! que mal te fiz eu, para me matares com o inesperado da tua vinda? - murmurou Dulce desfalecendo, e vindo cair nos braços do trovador.

Mas estes braços não se uniram para a estreitar contra o peito! O cavaleiro afastou-a de si brandamente, e prosseguiu:

— Não é minha a culpa se um raio caído do céu vem partir a cadeia dos teus dias risonhos tecida pela traição. Meus juramentos cumpriram-se. Dulce, que fizeste dos teus?

O carácter de Dulce era um misto inexplicável de candura e de energia, em que a fraqueza própria do seu sexo era muitas vezes subjugada pelo sangue nobre e generoso que lhe girava nas veias - o sangue dos Bravais. A alegria súbita de ver Egas poderia ser-lhe fatal, se as palavras gélidas que ele lhe dirigia não houvessem temperado o delírio do primeiro instante. Nessas palavras conheceu a donzela que o ciúme era quem as ditava. O sentimento da injustiça com que o cavaleiro repelia a sua ternura a fez recobrar a consciência da situação em que se achava. Durante alguns momentos um silêncio profundo reinou entre os dois amantes, que olhavam fitos um para o outro. Dulce, por fim, tirando do seio um pequeno punhal, deu dois passos para diante, e arrojando para longe a bainha tomou-o pelo ferro, e oferecendo-o a Egas disse-lhe com voz a princípio firme, mas que brevemente as lágrimas cortaram:

Quando há três anos, Egas, o nobre trovador, partiu para o ultramar, a sua amante na hora cruel da despedida pediu-lhe uma lembrança, que bem dizia com os seus tristes pressentimentos. Esta memória foi o punhal toledano que ele trazia consigo. Dulce era uma pobre órfã: podiam constrangê-la a ser infiel; e então cumpria-lhe morrer: foi para morrer que ela o pediu... Egas! - prosseguiu a donzela - os meus juramentos guardei-os até hoje: juro-o por Deus que nos ouve! Mas se me crês culpada, ou que eu possa vir a sê-lo, vinga-te da traição, ou embarga-me o trair-te.

E estendia o punhal para o cavaleiro.

— Sabes que eu não poderia assassinar-te! - replicou Egas. - Nem para te assassinar vim aqui. O meu intento era outro... Qual?... Nem eu mesmo o sei... Trouxe-me mau grado meu a loucura da desesperação. Oh, sim!... agora me recordo... vinha para te dizer: "Dulce, fizeste bem em trocar o foragido, o homem que só possui a pouca terra que lhe deixaram seus pais; que não ganhou ainda nos enredos cortesãos um único préstamo, pelo cavaleiro estranho que pode e vale tudo com o senhor destes paços prostituídos... vinha dizer-te que cumpri a promessa de estar outra vez a teus pés dentro de três anos. Estive a teus pés!... Agora nunca mais perturbarei tua dita. Escusas de perjurar ao céu para negar o perjúrio..."

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9783967995862
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