Читать книгу: «O fim do disfarce»
© Editora Gato-Bravo, 2021
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editor Marcel Lopes
coordenação editorial Paula Cajaty
revisão e adaptação Inês Carreira, Frederico Gustavo dos Anjos
projecto gráfico Bookxpress
imagem da capa Rebeca Rasel
Título
O fim do disfarce
Autor
Victor Santos
e-isbn 978-989-8938-87-9
1a edição: Fevereiro, 2021
gato·bravo
rua de Xabregas 12, lote A, 276-289
1900-440 Lisboa, Portugal
tel. [+351] 308 803 682
editoragatobravo@gmail.com
editoragatobravo.pt
A Frederico Gustavo
A Victor Bonfim
Sumário
Agradecimentos
Mataram a praia lá de Água Izé
Introdução
O fim do disfarce
Glossário
Agradecimentos
Os meus sinceros agradecimentos às pessoas que diretas ou indiretamente me ajudaram neste trabalho tão árduo e bonito como é o caso da escrita de O fim do disfarce, de uma longa vida.
Não se compra a amizade,
ela é como uma semente lançada à terra.
Sendo de boa qualidade brotará,
crescerá e dará frutos no seu habitat.
Assim seja!
Mataram a praia lá de Água Izé
Com Luta ganhamos a nossa andorinha
Feita com revoltas e garras
Gentes audaciosas
Balbuciaram a meia voz
Andorinha voa, voa Andorinha
Pássaro de bom tempo
Voo tão lindo e difícil
Mas, morreram os nossos heróis
E Conquistamos os nossos valores
Andorinha, saímos passeando pelas ruas
Com tambores e gritos
Conquistamos a liberdade.
Nesse voo perdemos a voz do comando
É por este conto que choro
Onde está o nosso ninho
Num alicerce a desfazer-se na areia
Andorinha voa voa
Não quero mais lembrança
De tanta vingança
Que os códigos, palavras de ordem
Sem alardes nem conflitos
Não sejam sons dispersos
O bom tempo virá
Andorinha voa voa
Na procura de bom tempo
Hoje perdemos as cores da andorinha
Brotamos a semente separatista
De uma mente sem rumo!
Encontramo-nos todos perdidos
Na barca do abismo incerto
Andorinha voa, voa andorinha
Não queremos mais tristeza
Este nosso voar é populista
De barca do abismo incerto
Heróis terão que nascer
Com tanta luta perdemos os comandantes
Caídos na boca do inferno
Lá na praia de Água Izé
Hoje reinam soldados.
Dizemos que o bom tempo voou
Onde a vida primitiva reinou
Onde era espelho da pátria
E o individualismo entrou.
Até onde chegamos
De canoa a remos ficamos
Andorinha voa voa
Em roda do arco
Um dia conquistaremos o bom tempo
É que eu sou portador desta rubrica
Deste espaço bonançoso
Em que havemos de sorrir todos num forum
Sem rancor e reservas
Deixemos voar a nossa andorinha
Andorinha voa voa…
Ao meu pai – Manuel Victor
Aos meus entes queridos
Sucumbido pela vida
Tão cedo levou-te a morte.
Para tão longe dos viventes
Nem já sei o que te aconteceu
Onde na nossa roda de arco
Fazíamos um rio de esperança…
Da mesma água e da mesma nascente!
Corriam nas nossas veias.
No seu redor sinto!
Linhas que separam o nosso passado
Do teu espírito presente
Do teu coração imaculado
Tu deixaste-me saudades
Fração de lembrança que semeaste;
E não enterraste na terra!
Onde tu partiste e deixaste o cristal
Hoje! O nosso coração chora
Por uma insanável perda tua.
Introdução
O acordo pretendido pelo escritor era o de transcrever e terminar uma série de episódios de cinco rodas de convento de ideias ‘O fim do disfarce’, de uma vida passada.
Por acaso, este trabalho teve o seu início na Galeria Teia D’Arte, no grande encontro de oficina de letras em que o escritor projetou os primeiros rascunhos de uma grande resistência interna e interpretação de um projeto, no interior de uma esfera amigável que mantinha com o Carlos, a Antonieta, o Duda, a Esttela, a Cáthia e o Celso.
O romance tem o seu alicerce em factos reais, que o autor tenta expor de forma clara, tais como as personagens, os seus obstáculos, as suas emoções, a sua repugnância e as situações críticas da sociedade. Este carrinho de rodas, puxado por uma imensidão de amigos, pessoas carinhosas e afetuosas a quem não deixaria de dedicar esta obra, pelo auxílio prestado na realização dessa aspiração de um passado, de uma longa vida, como é o caso do Dr. Frederico Gustavo, do Dr. Victor Bonfim e do Senhor Caustrino Alcântara.
O fim do disfarce
I
Naquele tempo em que algum homem mais velho, como era o caso do Sun Me Xinhô, o homem respeitado no seu meio…
Ele acabou por sair, partiu de madrugada com os seus pupilos para a praça de fronte do cais velho, a atual Praça da Independência, no dia doze de julho de mil novecentos e setenta e cinco, para ver com os seus olhos o célebre evento que teve lugar naquele dia (marcado pelo cair da bandeira colonial e o hastear da bandeira nacional).
Segundo ele, e conhecido como sábio da freguesia de Almeirim, “Dja jagu na sa dja pa sun fe nadaxi plumêlu vê fa”1. Mas quem mais perto dos acontecimentos estava um bocadinho a leste dessa questão.
“Eram os mais novos”, porque os mais velhos anciãos eram conhecedores do saber popular, em suma, do verdadeiro manancial da sabedoria popular. Achavam sem limite, com mágoa, a escolha daquela data menos doce e azarenta, doce como mel, mas um verdadeiro fel para o advento da independência nacional.
Esses mais velhos associavam a esta data uma ideia de azar, que havia referências e atribuições daquilo que é profano, infeliz ou que prognosticava desgraça.
Aquele mundo exótico de suspeitas, de incertezas que tragavam tempestades acompanhadas de relâmpagos que poderiam devastar as inspirações de um povo, por estar associado a um evento infeliz ou de pouca sorte.
O povo imbuído desse credo cristão interpretou esse acontecimento com uma grande dúvida e conturbação, tentando obter resposta de como seria o nosso destino a partir daquele momento.
Quando era manhã já grandinha, a multidão mostrava-se enfurecida da longa espera daquele sorriso radiante da conquista da liberdade dos seus melhores dias. Reuniam em diferentes pontos das localidades mulheres de saias e kimoni, todas vestidas do mesmo traje, miúdos saltando com tanta alegria, pensando atingirem o céu.
O grupo dos outros indivíduos reunidos na localidade de Água Arroz limpava com vassouras com o lema – “vamos varrer os pés dos colonos, blanku be bô, su be d’ala” e assim iam lavando as ruas, lojas e muitos outros estabelecimentos da capital e arredores. As lojas eram invadidas e tudo se encontrava no chão, sem pernas, e o povo também limpava tudo o que representava os colonos para a foz da Baía Ana Chaves.
Tudo isso acabou numa confusão sem pernas — a cidade, rodeada de manifestações culturais, mais tarde deu lugar a um grande comício popular em que Sun Me Xinhô, cabisbaixo, falava baixinho aos seus adjuntos.
— Zêntxi Kêsê’ pya jagu2. Coisa dele começa bem, mas acaba mal. É como se você começar um teto de casa e a mesma não finaliza.
Esta conversa soava camuflada na mente dos indivíduos que haviam sido espalhados pelas raízes de toda a praça, ficando os ouvintes em dúvida de que se transformaria num obstáculo para as pessoas mais céticas.
— Isto é verdade?
O povo dividido sentia o executar de uma profecia, como que se acabasse de realizar um novo enlace matrimonial. Qualquer um que pede recebe, e quem busca achará, e a quem bate abrir-se-á a porta para a liberdade.
Porém, ao lado da bomba Sopol do velho Pontes, encostado na robusta palmeira real que ali se encontrava, o jovem Carlos, que esperava a sua vez para comprar petróleo, sentia correr nele uma leve brisa naquela tarde em que o sol já dourava, nesse embaralhar de gente, quando se deparou com uma menina aproximadamente da sua idade.
Embebido na súbita paixão que sentia pela menina, dada a sua linda formosura, este desabafou para ela o seu sentimento de amor.
Subitamente surge um homem de cabelo grisalho envergando o seu gibão, pedalando uma velha bicicleta de marca Hércules. Momentos depois travou e com um ar um tanto ou quanto tristonho dirigiu-se para o rapaz:
— Você não é neto de Sô Me Kutu Dama? Que perdeu uma grande roça de cacau, por causa da dívida que ele tinha com branco? Quando ele levou esta questão para o tribunal, minha tia San Plenta foi ver este julgamento. A tia disse que sô juiz ajuntou com branco, casta como ele, e enganou Sô Me Kutu Dama e ficou com roça de senhor. Ah… por causa destas e outras coisas que boca não pode falá é que nós vamos tomar a nossa independência, mesmo.
É com admiração e espanto que o velho, patrioticamente, ainda a soluçar pelo peso da idade, dirigiu as seguintes perguntas aos jovens:
— Vocês não repararam na grande manifestação de gentes que vieram de quase toda a freguesia lá ao lado de antiga Feira Grande? Feira Grande era lá de frente a loja do senhor Beirão, branco que gosta de preto. Vocês não viram que ele se casou com uma nossa patriça? Ela é uma angolar, de Anguené ou Tlaxá, isto é que eu não sei. Do grande dia de hoje, que todas essas roças que eles tomaram à força, nossas riquezas, sangês bonitas, chapéu de coco e bengala vão ficar para filho da terra. Tudo vai passá para as nossas mãos. Por isso não fiquem de fora, vamos lá ajuntar a eles, porque a terra é nossa. Não demorem, venham para ver coisa para contar, eu estou em frente, gente vê lá.
E aos pedais da bicicleta o velho foi indo rumo à grande multidão que se encontrava no sítio da então Feira Grande, o Cais Velho. Foi assim, distraído da paixão que anunciava o rapaz, que este se converteu num verdadeiro companheiro da formosa jovem ao longo daquela manifestação.
E foi nesse chegar e caminhar de um lado para outro que ninguém reparou na chegada de Sun Me Chinhô à Praça da Independência. A rapariga e o jovem, ao chegarem ao local, aperceberam-se de uma grande multidão de gente que se ali se encontrava.
— Encontramo-nos hoje por mero acaso do destino — dizia o Carlos.
— Viemos, mas depois… Vamos entrar no meio desse comício? — retorquia a menina
Respondeu o rapaz:
— Vamos ver com os nossos olhos esse momento único.
Ambos entraram juntos e, sem palavras, pararam junto ao edifício da antiga fazenda. A menina pôs-se a olhar seriamente para o rapaz, transparecendo nos seus olhos uma expressão de admiração, e de dentro dela saía uma voz, de tal forma doce, que chegou mesmo a perguntar-lhe:
— Vamos permanecer aqui para ouvirmos o que têm a dizer esses futuros líderes e decisores da nação?
— Sim, vamos esperar, porque eu também quero escutar esse discurso.
Os dois jovens permaneciam de olhos fincados à tribuna de honra, naquela hora em que o sol permanecia em pé como uma sentinela que fazia com que a pele suasse e se desidratasse.
Naquele instante ímpar, o suor tomava conta dos corpos daqueles jovens, que insistiam em aguardar momentos para observarem com os seus olhos de forma farolizada a passagem da transição do poder colonial para a independência nacional.
Com efeito de tanto aguardar, também um princípio de reflexão pairava no consciente do Carlos. No fundo do aceso discurso escutara uma voz do rapaz que virara para a menina e lhe afirmara:
— Escutaste o que dizia o mais alto representante do povo? Que a partir de agora deixaria de haver a exploração do homem pelo homem e tomaríamos a dianteira dos nossos próprios destinos?
— Sim, isto eu escutei! Quer dizer, na prática, que tomamos a independência total — respondeu a Esttela.
O Carlos erguia um pouco mais a cabeça, olhava afincadamente e escutava cada palavra proferida pelos líderes políticos, que abordavam naquele momento de forma tão utópica as questões da política, da economia, do trabalho e da habitação.
Naquela ocasião soavam vozes de aclamação tão altas, que pareciam não ter fim e consecutivamente estalavam sons de foguetes de aplauso. O povo parecia enfurecido pela amarga resposta dada pelos colonos ao longo do destino dum país colonizado.
Sussurrei baixinho, alegando a força do povo, depois suspirei para me assentar em terra, o sol ia penetrando no chão, radiava o seu calor, os corpos suavam, mas o povo não arredava os pés da praça, o espaço ia ficando tão pequeno para tanto mar de gente que vinha de um lado e do outro — pensava o Carlos, baixinho, com admiração.
Algum tempo depois, o mesmo cerrava os olhos e a sua mente começava a navegar, levando-o ao cume do entendimento, vindo-lhe primeiro a lembrança contada pelo seu avô das perseguições levadas por Gorgulho no massacre de 1953. Segundos depois, abrira os olhos para entender os motivos que levaram a tanta euforia, tanto sorriso nos lábios que o embriagara. Seguidamente os seus olhos começaram a verter lágrimas, de tanta a união e humildade do povo.
— O que não entendi no discurso é como eles irão criar uma nova mudança nas relações sociais de produção? Será que a roça que a minha avó perdeu para o branco iremos tomar para sermos homens libertos? — indagou o Carlos.
Naquele levar da conversa, no meio da nuvem de tanta gente, a menina ficou muito alegre por ter tido a oportunidade de ser granjeada por tanta surpresa daquele dia. Subitamente, confessou ao rapaz que não aguentava permanecer triste e que toda a sua vida havia recebido muito carinho por pessoas próximas e amigas.
O seu entusiasmo era grande, o seu sorriso brilhava como sol, a sua pele era da cor entre o amanhecer e o anoitecer, ela era meiga, dócil e bem prendada.
De repente, a menina falava ao rapaz:
— Eu sou uma mulher muito alegre, uma mulher cheia de vida e com alegria para dar ao mundo.
Inesperadamente, a mesma questionava:
— Queres me abraçar?
O moço não respondeu.
— Este é um momento único da nossa história — insistiu a menina.
— Ok. Como não desfrutamos aqui nada para comemorarmos, toma um abraço.
Foi assim que o jovem, bastante inspirado com a forma tão envolvente e simpática da menina, garatujou em papel uns versos, revelando o sentido do seu devaneio.
Querer e Viver
Na caverna via-se a luz
No fundo da caverna via-se corrente
Corrente que o prendia
Feito cabeça, tronco e membros
Cabeça, a ilusão dos olhos
Tronco, a figura do corpo
Membros, o mover da alma
No sol via-se o fulgor
Na estrela encontrava-se brilhos
Na lua via-se amor
Ao acabar de reler o poema, a menina emocionou-se com o gesto do rapaz, que havia despertado nela um sentimento de admiração. Ela, toda encantada, interrogava-se sobre o que ele pretendia dizer com aquelas palavras.
O rapaz, apercebendo-se da fragilidade da moça naquele instante, agiu muito sorrateiramente, entrando numa intimidade com os gestos e o olhar de possuir e desfrutar daquela bela fina flor.
Porém, deparando-se com aquele ápice gozo, não hesitou em abraçá-la fortemente, levando a sua mão a acarinhar o seu corpo, que estremecia como um pestanejar de uma lâmpada acesa, acabando por usurpar-lhe um beijo na face.
O rapaz tinha encarado com toda a determinação e com toda a aceitação a existência de uma predestinação que o levava na mais incandescente bola de neve do amor, todo aquele ensaio de manifestação e afirmação do embrião que desabrochava num sentimento ímpar.
À sua volta, a paisagem de gente animada naquele comício escutando os juízes do povo não enxergou a mais doce união de sorrisos, porquanto as suas emoções se concentravam em torno do mais esperado e aguardado momento do hastear da bandeira e do entoar do cântico do hino nacional.
A menina, depois de ter ganho um beijo, fingidamente continuava a falar:
— Sabes o que fizeste?
— Não, não sei.
— Então, por que tu fizeste aquilo?
— Consegues ler os meus olhos? Porque não há palavras que possam justificar esta atitude minha, pois ela é de um sentimento sufocante e discreto por ti — respondeu o rapaz.
A menina retorquiu:
— Eu já não sou assim. Só porque nos encontramos hoje e nem nos conhecemos é que podemos estar entre beijinhos? Para ti é tudo fácil. Tudo leva o seu tempo.
— És uma mulher linda e com uma mão cheia de magia.
— Como sabes? — perguntou ela.
— Devido ao teu jeito e à tua mão macia — retrucou.
A dada altura, quando defronte do mais alto mastro da nação, de olhos firmes, fixados na bandeira da terra de São Tomé e Príncipe, o rapaz cogitou:
Somos livres hoje. Até que enfim… Nada paga a liberdade de um homem. Desta hora em diante tenho que dedicar toda a minha inclinação em nome da minha Pátria pois compreendo que esta é uma obrigação ao serviço da nossa emancipação popular. A partir de hoje poderemos esculpir as nossas raízes e compor os nossos sonhos. — Este foi o monólogo surdo do Carlos.
De olhos firmes postos na bandeira nacional, era uma força de tal modo inacreditável e contagiante, que de repente a formosa menina volta para o rapaz:
— Eh! O quê que deu contigo? Fala comigo, diz-me ao menos o teu nome. Como tu te chamas? — perguntava a Esttela.
— Carlos — respondeu.
De repente, o rapaz lembrava-se de que tinha de comprar o petróleo, por isso foi obrigado a despedir-se da linda menina.
Feitos os afazeres da mãe, lembrou-se de que não havia solicitado o nome da rapariga que tinha conhecido naquele dia:
— Mas como vai dar certo? Como conseguirei encontrá-la? O que fazer? O Carlos recordava a todo o momento o que havia falado à menina. Essas foram perguntas sem respostas.
***
Passaram-se uns anos no Bairro de nome Bota Brasa, localizado na zona periférica da cidade de São Tomé, a um quilómetro e poucos metros do velho Fotxi Pedasu.
Fotxi Pedasu era o nome dado pelos nativos da ilha à antiga zona envolvente da fortaleza São Jerónimo, construída por volta do ano 1530, devido ao seu posicionamento e à sua singularidade na altura.
Situava-se naquele quintal a casa de uma família humilde, onde vivia modestamente um jovem de nome Carlos, que já media aproximadamente 1,75m de altura.
II
Naquele bairro tão pobre, a sua mãe sofria nos cantos dos seus olhos, sentada à beira da escada com a sua mão no queixo e o rosto rasgado e maltratado. Contava com mais de quarenta anos, tinha três filhos, duas raparigas e um rapaz, sendo a mais velha a Ana Maria Pinto, o segundo Carlos Pinto e a última a Domingas Pinto.
Ela era como a maioria das mães do bairro, mas a sua vida era atravessada pelo labirinto. O seu encanto e a sua dedicação aos filhos traduziam simples e completo amor aos mesmos. Ela era de carne, sangue, osso, riso e lágrimas.
O seu penúltimo filho, muito sereno, pensava em prosseguir os seus estudos no curso noturno, ideia que ela veio a acolher com afago e consolação.
A sua casa era de madeira embuçada de cal, comprada com o dinheiro da venda de peixe salgado que vinha do ilhéu das rolas, porta de taipal com refugo de madeira, cobertura de pavo feita com folhas de coqueiro da roça vizinha do lado de baixo.
A infância foi dominada por um autêntico ambiente de terror, pela ausência de um pai biológico que não permanecia no lar. O quotidiano de tal pai era preenchido de extravagância nas tabernas e tascas, nos momentos extralaborais. Por isso, não lhe restava tempo para dedicar às lindas flores que ele próprio arremessara ao mundo.
O Carlos, com as suas dificuldades, sempre seguindo o velho ditado de um velhinho amigo, de nome Sum Me Taba, que lhe serviu de orientação num caminho, mas um pouco espinhoso.
— Rapaz, deixo-te esta mensagem: não se pode perder o horizonte da vida, os problemas devem ser ultrapassados de uma forma racional.
O jardim da sua infância era carente de flores, não foi bem tratado. Só teve anseios de um dia conseguir realizar os seus sonhos.
A angústia e o trauma foram difíceis de ser ultrapassados pelo jovem, que no nono ano foi obrigado pelos tempos difíceis a frequentar aulas durante semanas, com o único uniforme que havia adquirido.
O fantasma que o invadia nas manhãs da infância apresentava-lhe a vida, como uma pura imaginação cega. O presente da sua vida corria como o tempo. A vida era venenosa como um escorpião, para um menino que sempre serviu de objeto de gozo do bairro. Essa evidente falta de razão parecia ser mais uma realidade na família.
Ao princípio, esse tipo de relações não lhe importava tanto, por mais complicado que fosse. Depois, começou a refletir, sentia a dor aos nove anos pelo facto de a separação dos pais lhe causar tanta desilusão e sofrimento.
O Carlos via-se no ponto central do conflito, era humilhado e às vezes agredido pelo pai com ondas de palavras que lhe interrogavam como fossem lima em cima do manchim, que criara o hábito de o insultar pelas mais pequenas questões. O rapaz crescia num universo hostil, sofrendo influências várias, escutando as discussões dos pais.
O pai do Carlos, o senhor Duda, como homem santomense, era polígamo. Circundavam-no várias mulheres e ele exigia-lhes a fidelidade. Naquela prática, os homens tinham tantas mulheres quantas podiam sustentar.
Essa capa que cobria o Duda era dominante no comportamento sexual do homem santomense, como dizia o jornal português que o comparou a uma abelha voando toda a vida de flor em flor. O tal vento que soprava era a comparação que abrangia a maioria dos homens que eram polígamos e cuja tendência a de manter múltiplas uniões, desde que pudessem sustentá-las.
Duda encarava as suas uniões e relações ocasionais como assuntos privados, com os quais a esposa nada tinha a ver; a sociedade via, observava e encarava a dominância masculina como condição natural do seu vigor.
Duda ostentava tudo o que tinha ganhado do grande esforço realizado na empreitada de obras prestadas às mulheres cuja atitude e cujo pensamento que demostravam revelavam o seu privilegiado estatuto social.
Duda tinha nas suas múltiplas uniões e relações ocasionais muitos filhos, em diferentes pontos do país.
A mãe de Carlos era de origem santomense. Depois de se ter separado do marido — Duda, um pedreiro de construção civil com quem teve três filhos — por questões de maus tratos, a sorte atirou-lhe ao desespero e à angústia, e as dificuldades invadiam-lhe a casa como a água transborda nas margens do rio.
Com a separação, os filhos pequenos permaneceram com a mãe, e Carlos tornou-se assim um menino inquieto e irrequieto, que se perturbava com tudo que era diferente.
Carlos, sempre que se deparava com situações novas ou de difícil solução, recorria ao seu amigo Sun Mê Taba, que era como um monge.
A sabedoria da vida não lhe faltava, a experiência também não. Carlos tinha a sensação de que Sun Mê Taba era um homem vivido e de tanto conhecimento, o que lhe assemelhava a um sábio. Conhecia a vida como a palma das suas mãos.
Sun Mê Taba era um homem de aproximadamente setenta e poucos anos e já dava os primeiros passos de tartaruga. O seu rosto cansado e a sua mão dura davam a sensação de que a sua juventude fora de trabalhos forçados na época colonial.
Sun Mê Taba, o amigo do Carlos, conhecia bem aquele miúdo, desde muito cedo. Sabia como sofria os maus tratos do pai, recordava as atitudes incorretas do senhor Duda em relação ao menino. Por isso tentava aconselhá-lo para que o mesmo não seguisse o caminho do pai.
Ninguém invejaria ter uma vida semelhante à de Carlos. Na sua caminhada, isolado nas noites, nos momentos de reflexão enquanto, deambulando pela marginal, o seu interior murmurava num silêncio. Nessas ocasiões, para ele seria como quem estivesse a passar por um calvário, tal como Jesus Cristo na cruz.
Os amigos desdobravam-se em esforços para que o mesmo não fosse pelo caminho da mais dura fatalidade da vida, impedindo-lhe a concretização do suicídio, motivado por já não conseguir desaguar essa alegada dor que lhe perturbava a mente.
Era sempre assim a sua vida. Uma bela tarde em que as asas da noite já se escondiam no horizonte do oceano, Carlos envolveu-se numa grande discussão com troca de palavras obscenas com o seu colega Santiago, que mais tarde veio a acabar em agressão corporal.
Embora fosse um jovem cauteloso em relação às suas amizades, a humildade e o respeito faziam dele uma pessoa acarinhada na comunidade.
Naquele dia, quando passava pela rua, apercebendo-se da presença do professor Helder num debate com alguns jovens do bairro, o mesmo aproximou-se lentamente do grupo que escutava o professor. Numa conversa amistosa com aqueles adolescentes, retratava os problemas surgidos com algumas roças retiradas dos nativos forros e o fardo que vinha do programa de ajustamento estrutural.
Aqui estava o seu caso. O programa havia entrado devido à agonia, ao suor e às lágrimas que vertiam do centro dos olhos tristes de um ibondeiro de gente que se encontrava isolada. Essas imensas almas que muitas vezes gritavam no silêncio angustiante pela repreensão e pelas decisões sucessivas, mal planeadas e moribundas naquele abandono. Pensava-se e sonhava-se num pequeno jardim como uma ilha de tamanho de uma palma na mão de uma criança como o sol que irradiava um sorriso desfocado, numa altura em que as plantações de cacaueiros, a maior fonte de receita do país, já envelhecidas por estarem numa fase muito adulta, necessitavam ser substituídas por outras mais novas. Aquela aflição da baixa produção veio sobrecarregar muito mais as almas que se encontravam naquele lugar lá no fundo da fila, já putrificadas e herdeiras duma situação que se agravava com o decréscimo do valor do produto no mercado internacional e que estavam a ser arrastadas sucessivamente naquela década.
— A situação não narrava e nem parava de agudizar o que sucedeu também com a baixa de produção nos anos 1980. Tudo isso arrastou consigo a diminuição de outros produtos, como a copra e o café.
— Não deixavam de negar, porém, que naquele tempo a janela do luar que iluminava os olhos dos mais desfavorecidos, encontrava, na altura, cada vez separado, desapontado num sonho da escuridão, daquele peito já dorido que já não escondia a escuridão, a dor e os maus tratos dos tempos mais sofridos da colonização.
— Com a entrada do plano de ajustamento estrutural, dava-se a entrada, pela porta principal, dos danos que foram mais melancólicos, devastadores, criando enxurradas que haviam separado as classes sociais, amamentando um clima insípido, sem paladar de alma, engolindo os mais desfavorecidos na cova da extrema miséria — continuava o professor Helder.
Aquele fenômeno deu azo a que muitas pessoas deixassem o seu meio rural, pelo fato de, nas roças, quase não existirem serviços sociais. Ou eram inexistentes — e, por isso, uma grande parte veio instalar-se nas zonas suburbanas da cidade, abrindo comércio informal de retalhos, como a venda ambulante de calcinhas, de fardos — ou, na sombra de outros serviços, que não duravam para muito tempo, com a venda do terreno que o Estado havia distribuído através da orientação do programa que havia criado o plano de distribuição de terras agrícolas.
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