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O Poeta da Morte

Por Antonio Torres9

Não venho falar de Baudelaire nem da “Charogne”.

O poeta a que me refiro é bem outro.

É um bárbaro. Nascido à sombra dos buritizais da Paraíba e falecido há pouco nas

montanhas brumosas de Minas. Falo de Augusto dos Anjos.

Era um poeta estranho, “sui generis”, no Brasil.

Estava ainda muito distante da perfeição, da “euritmia” sem a qual é impossível existir qualquer obra de arte. Ele próprio era o primeiro a reconhecê-lo. As suas ideias eram sempre grandes, mas nem sempre a expressão correspondia a grandeza do pensamento. Daí, a falta de homogeneidade da sua obra publicada, que consiste toda no seu primeiro e único livro “Eu”, dado à estampa em 1912. Era uma fiala preciosa, cheia de cheia de essência rara. A essência, porém, não podia correr abundante, dada a angústia do gargalo.

Não obstante, muitas vezes o que corria era realmente precioso. O poeta mais de uma vez, no seu livro se queixa dessa dificuldade que experimenta a linguagem humana para exprimir certas ideias e certos sentimentos, cuja amplitude, correndo nas profundezas do subconsciente em busca das claridades objetivas, é obrigada a contrair-se diante da estreiteza do Verbo e a refluir novamente para dentro de si mesmo e continuar no seu período de estação no verbo mental. A ideia, diz ele:

Vem do encéfalo absconso que a constringe,

Chega em seguida às cordas da laringe,

Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra,

Mas, de repente, e quase morta, esbarra

No molambo da língua paralítica!

O mesmo sentimento de Impotência verbal para exprimir a grande ideia que o atormenta está visível no soneto "O Martírio do Artista", em que, depois de descrever o seu tormento interior em busca da beleza, tal como ele a entendia, remata com esta imagem:

Tenta chorar e os olhos sente enxutos!...

É como o paralítico que, à míngua

Da própria voz e na que ardente o lavra

Febre de em vão falar, com os dedos brutos

Para falar, puxa e repuxa a língua,

E não lhe vem à boca uma palavra!

Ele mesmo, pois, era o primeiro a reconhecer a dificuldade de justapor a palavra à grandeza de uma ideia, portanto, a re-conhecer também a imperfeição da sua obra

O autor da "Eu" era um caso realmente curioso, quase dizia, singular na literatura brasileira.

Senhor de uma cultura científica superior a sua idade e ao meio em que estudou; sabendo versificar com elegância e brilho; possuindo uma alma verdadeira de poeta e de idealista; era um monista convencido, pelo menos no princípio da tua vida. Via-se que a literatura demasiada de Haeckel e Spencer deixara-lhe um sulco profundo na inteligência.

No mundo ele via sempre as combinações cósmicas, as alianças elementares, as convulsões sísmicas. as revoluções telúricas e siderais, o amálgama de todas as forças latentes do Uni- verso, submetidas à fatalidade das leis físicas « biológicas e tendendo para a harmonia e unidade da Vida.

Era nesse materialismo que ia buscar os motivos da sua arte, fecundando-o com o seu idealismo tropical e vendo lutas e combates onde a ciência, através dos seus óculos autoritários, descobre apenas leis, princípios, fórmulas e equações.

Nem sempre o seu amor à "realidade" aparente dos fenômenos lhe dava as expressões mais felizes. Mais de uma vez o seu materialismo o fez deslizar inconscientemente em expressões brutais e imagens rebarbativas, por vezes absolutamente intoleráveis. Não as apontarei.

Entendo que a crítica não deve ser confundida com os gabinetes de anatomia, nem foi feita para ostentar monstruosidades. A sua missão é apontar para a Beleza, cultuando o heroísmo daqueles que souberam objetivá-la, principalmente em um meio ingrato e inóspito como o nosso, em que os gelos polares da indiferença, quando não as garrochas do sarcasmo, são o galardão que obtém os que nasceram marcados pela fatalidade dos sonhos e das obstruções. Crítica sistematicamente demolidora façam-na os hepáticos, os hipocondríacos, os invejosos e os despeitados.

O que torna extremamente destacado no seu meio este poeta é a ausência absoluta da tecla erótica no órgão magnífico da sua inspiração. Não cria no amor. Por isso não o decantava. Fenômeno inexplicável num homem nascido sob as ardências do nosso clima bárbaro e numa terra em que o amor ê a nota predileta da musa indígena.

Não que se deva condenar a poesia nacional por isso, uma vez que o amor ainda persiste em ser a aspiração máxima do homem, na sita busca incessante das "afinidades eletivas" para perpetuar-se na espécie. Mas a verdade é que, como observa Sully-Prudhomme no seu "Testament poétique", já antes de nós tantos outros têm cantado esse motivo do amor, que é difícil produzir criações dignas de nota em tal assunto. Desde que o lirismo despontou no Hélade, pelas idades remotas em que tentava os seus primeiros passos com os trenos, peans e himineus, desde esses tempos, anteriores a Píndaro, até hoje, a humanidade canta as dores produzidas pelo espinho de que falou Teócrito. E como essas dores são sempre as mesmas, a inspiração não muda.

Restavam aos poetas outros motivos de arte-. Deus e o mundo, o primeiro com as suas sugestões místicas e sombrias, o segundo com os seus deslumbramentos pagãos.

Deus já foi suficientemente cantado em todos os tons pelos místicos, pelos simbolistas, pelos decadentes, pelos próprios líricos. O mundo tem sido cantado, mas nos seus aspectos exteriores, nos seus fulgores superficiais, no brilho dos astros (com exceção da lua, que essa é sempre pálida, corno os treponemas), na verdura das seivas, no azul dos mares, no multicolorido das flores, na monotonia sempre nova das formas femininas... Era preciso canta-Io agora nas suas lutas interiores, animando os combates dramáticos da sua evolução orgânica da mesma forma que se dera uma vida e um corpo de imagens aos dramas do coração. Daí, dessa descrença em relação a Deus e dessa saciedade em relação ao amor, nasceu uma nova forma de arte, uma nova modalidade de poesia, que, na França, elevou tão alio Sully Prudhomme, e que, no Brasil, teve eco, sonoro mas transitório como todos os ecos, na inspiração cientifica do sr. Augusto de Lima.

Ora, Augusto dos Anjos, que, segundo parece, não cria em Deus, pelo menos como o entendem os teólogos, só podia cantar a matéria, Idealizando-a, revelando-a sob uma sábia, rutilante e sonora combinação de palavras tão bem ritmadas que adquiriam cor e movimento.

Dirão talvez que a sua filosofia era avelhentada, que ele era um sectário de Haeckel e de Spencer, quando há tanta coisa nova e digna de ser decantada. Mas a verdade (e parece certa que ela existe nas teorias evolucionistas) não tem idade. Não envelhece nunca. E eu não sei qual será mais novo: se um poeta que canta os velhos símbolos clássicos ou românticos, ou se um outro que decanta os símbolos que a ciência descobriu, há uns cinquenta anos. Desde que Lamarck, Buchner, Haeckel, Spencer, Darwin e outros da mesma escola estabeleceram em bases sólidas as suas teorias, até hoje, ainda não surgiu nenhum rumo novo apontado aos estetas, aos críticos e aos pensadores pelos homens da ciência de observação e experiência. Pelo contrário, o que se vê são tentativas para galvanizar a metafísica, feitas por filósofos de salão, como Gerhardt Hauptmann qualificou há pouco tempo o Sr. Henry Bergson, cujas obras, graças a Deus; acabam de ser postas no índice pela respectiva Congregação. Praza aos céus que a condenação nominal da "Matéria e Memória", "Dados imediatos da consciência" e "Evolução criadora" não sirvam de reclamo para o seu intolerável autor...

Augusto dos Anjos era um "monista-evolucionista-transformista".

“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,

Do cosmopolitismo das moneras...

Pólipo de recônditas reentrâncias,

Larva de caos telúrico, procedo

Da escuridão do cósmico segredo,

Da substância de todas as substâncias!

A simbiose das coisas me equilibra.

Em minha ignota mônada, ampla, vibra

A alma dos movimentos rotatórios...

E é de mim que decorrem, simultâneas,

A saúde das forças subterrâneas

E a morbidez dos seres ilusórios!

Mais adiante, num belo terceto final, reconhece a unidade substancial do Universo:

Rasgo dos mundos o velário espesso;

E em tudo, igual a Goethe, reconheço

O império da substância universal!

No “Último Credo", a sua profissão de fé evolucionista é insofismável:

Creio, como o filósofo mais crente,

Na generalidade decrescente

Com que a substância cósmica evolui...

Creio, perante a evolução imensa,

Que o homem universal de amanhã vença

O homem particular eu que ontem fui!

E, todavia, seria engano manifesto supor que este poeta, por ser materialista em filosofia, fosse material nos senti- mentos. Era um idealista na mais nobre, na mais vibrante e, digamos, na mais dramática acepção do vocábulo. Só quem a conheceu pessoalmente é que pode, sob este aspecto, julgá-lo com absoluta isenção de ânimo.

Magro, de uma magreza ascética, que lhe dava ao corpo uma aparência por assim dizer fluída; como eis próprio confessa num soneto:

Levando apenas na tumba carcaça

O pergaminho singular da pele

E o chocalho fatídico dos ossos!

De uma honestidade sem limites; de uma pureza que, neste país e nestes tempos, devia ser vibrada aos quatro ventos da terra em clarinadas triunfais por trombetas de prata; incapaz de tergiversar manhosamente no cumprimento de um dever individual, cívico ou doméstico; inacessível, impermeável às sugestões da lisonja, quer ativa, quer passiva; nunca se dando ao desporto detestável de atassalhar a reputação literária ou particular dos seus confrades que entre nós, infelizmente, é tão comum nas periódicas campanhas literárias; jamais descendo, na palestra, a esses abandonos durante os quais as palavras, em trajes menores, correm rápidas como dardos e esfuziam como coriscos; bom e leal companheiro na amizade, simples, modesto, recatado, era um tipo de admiráveis virtudes individuais. Era materialista pela cultura; idealista por temperamento.

Ora, cada vez mais nós nos devemos convencer de que a Arte é "a natureza vista através de um temperamento".

Opinião esta já bem antiga, porque Virgílio, nas "Geórgicas", no princípio daquele tão encantador livro IV, em que nos pinta a vida das abelhas como nunca o fará Maeterlinck, já reconhecia que o assunto do poema pode ser humilde; o que importa â glória do poeta é que ele tenha a inspiração apolínea:

In tenul labor; at tenuls non gloria, siquem

Numína lava slnunt auditque vocatus Apollo...

E assim que ele, o monista violento e por vezes brutal, sem sombra de necessidade, diz nos "Gemidos de Arte”:

Mas a carne é que é humana! A alma é divina.

Dorme num leito de feridas, goza

O lodo, apalpa a úlcera cancerosa,

Beija a peçonha, e não se contamina!

Nota-se-lhe, então, algumas estrofes adiante, o desprezo peIas realidades chatas, embora inevitáveis, da existência:

Barulho de mandíbulas e abdomens!

E vem-me com um despreza por tudo isto

Uma vontade absurda de ser Cristo

Para sacrificar-me pelos homens!

As suas perambulações intermundiais deixavam-no insatisfeito. Era insaciável o seu desejo de ascensão. A sua vibrátil sensibilidade cada vez mais o distanciava do mundo que ele habitava. Queria subir, subir sempre, de mundo em mundo, num incessante "quaere superius", como Santo Agostinho, contemplando as estrelas numa praia aromal do Mediterrâneo:

Vestido de hidrogênio incandescente,

Vaguei um século, improficuamente,

Pelas monotonias siderais...

Subi talvez às máximas alturas,

Mas, se hoje volto assim, com a alma às escuras,

É necessário que inda eu suba mais!

Era um famélico da luz insuperável, das vastas amplidões iluminadas, de onde não se enxerga a chatice material da vida ordinária. Não queria ver as maravilhas e as rebarbas da existência. Trazia dentro de si um sonho interior tão grande, que só queria descortinar os amplos horizontes que aos miopes da ordem sentimental aparecem longínquos e vagamente esfumados. É que ele confessa nas "Queixas noturnas":

Como um ladrão sentado numa ponte

Espera alguém, armado de arcabuz,

Na ânsia incoercível de roubar a luz,

Estou à espera de que o Sol desponte!

(...)

As minhas roupas, quero até rompê-las!

Quero, arrancado das prisões carnais,

Viver na luz dos astros imortais,

Abraçado com todas as estrelas!

Observei desde princípio que este poeta era inacessível a inspiração erótica. Era isto, parece-me, efeito do, seu pessimismo substancial, o mesmo pessimismo leopardiano, de quem, como o poeta de Recanati, nasceu trazendo dentro em si, não a força da Vida, mas os germes deletérios da Morte; o mesmo pessimismo que o fazia detestar a Vida, como é fácil verificar compulsando o seu livro, fazia-o também ter pelo "amor' o mais profundo desprezo. Era natural. É pelo amor que se perpetua a Vida; logo. deve detestar o primeiro, que é um "meio", quem detesta a segunda, que é um "fim". Era perfeitamente lógico.

Por duas ou três vezes que ele toca no assunto é para proclamar o seu supremo desprezo não tanto pelo sentimento, como pela sensação, penso eu:

Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!

O amor da Humanidade é uma mentira.

É. E é por isso que na minha lira

De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!

Quando, se o amor que a Humanidade inspira

É o amor do sibarita e da hetaíra,

De Messalina e de Sardanapalo?!

Quis saber que era o amor, por experiência,

E hoje que, enfim, conheço o seu conteúdo,

Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo,

Todas as ciências menos esta ciência!

Materialismo brutal, dirão. Enganam-se. Ainda aqui, mais uma vez, tocam a rebate todas as campanas do seu acrisolado idealismo. O que ele detestava acima de tudo era o que ele chamava os "amores fúteis". Queria o amor impossível, o sentimento puro, espiritual, fluido, etéreo, imarcescível, que para ele era:

É a transubstanciação de instintos rudes,

Imponderabilíssima e impalpável,

Que anda acima da carne miserável

Como anda a garça acima dos açudes!

Eis por que lhe chamo "poeta da morte", porque não amava a Vida nem o Amor. Estava no seu direito, ou melhor, na sua fatalidade.

Quero, entretanto, antes de concluir este artigo, oferecer a gente ledora dois sonetos do poeta pouco conhecidos. O primeiro, em que ele idealiza e espiritualiza tão encantadoramente as forças universais, é o seguinte, por ele intitulado "La mento das cousas":

Triste, a escutar, pancada por pancada,

A sucessividade dos segundos,

Ouço, em sons subterrâneos, do Orbe oriundos

O choro da Energia abandonada!

E a dor da Força desaproveitada,

— O cantochão dos dínamos profundos,

Que, podendo mover milhões de mundos,

Jazem ainda na estática do Nada!

É o soluço da forma ainda imprecisa...

Da transcendência que se não realiza.

Da luz que não chegou a ser lampejo...

E é, em suma, o subconsciente aí formidando

Da Natureza que parou, chorando,

No rudimentarismo do Desejo!

O segundo soneto que citarei será o derradeiro, chama-se “Último Número”; Fê-lo o poeta pouco antes da sua morte. É um soneto cabalístico, não há negá-lo. É sibilino. Que será o “último número”. Será a última vibração do seu ser em prol da Beleza? Será o último transporte das suas faculdades em direção à sua companheira – a Poesia? Será a sua derradeira aspiração a objetivar na angústia de uma estrofe todo o infinito que ele trazia dentro de si? Pode não ser nada disso e pode ser tudo isso ao mesmo tempo...

Enquanto ao soneto, ei-lo aqui:

Hora da minha morte. Hirta, ao meu lado,

A Ideia estertorava-se... No fundo

Do meu entendimento moribundo

Jazia o Último Número cansado.

Era de vê-lo, imóvel, resignado,

Tragicamente de si mesmo oriundo,

Fora da sucessão, estranho ao mundo,

Como o reflexo fúnebre do Incriado:

Bradei: — Que fazes ainda no meu crânio?

E o Último Número, atro e subterrâneo,

Parecia dizer-me: “E tarde, amigo!

Pois que a minha autogênica Grandeza

Nunca vibrou em tua língua presa,

Não te abandono mais! Morro contigo!”

Concluamos. O que Augusto dos Anjos deixou publicado é imperfeito e pouco. Entretanto, é preciso reconhecer que há, no meio de todas as imperfeições da sua obra, extraordinárias belezas. Ele valia sobretudo pelo que era: uma revelação de artista pouco comum num meio inóspito. Quanto à quantidade, não são muitos livros ou calhamaços de um homem de letras que dão direito à estima e aos respeito dos seus pares, mas a qualidade da sua inspiração e do seu idealismo, a sua probidade literária e o seu amor pelo trabalho. E a este respeito não nos esqueçamos de que para a Academia de Letras, tem entrado singulares homens de letras que nem sequer são “unius libri”10.

Quanto às suas imperfeições, não percamos de vista que ele acaba de morrer na flor da idade e sem ter tido vagares para expungir os seus versos dos defeitos inevitáveis num primeiro livro. Depois, nem sempre a perfeição marmórea dos versos é suficiente para consagrar um artista. Uma composição poética dos versos pode ser um primor de métrica e versificação e não ter sombra de poesia. É o que sucede inúmeras vezes a Leconte de L’Isle, por exemplo, e a muitíssimos outros poetas franceses, dos quais diz Sully Prudhomme que aparecem com extraordinária precocidade, revelando-se conhecedores das mais secretas astúcias da ver- sificação, conhecendo à maravilha o seu ofício, em suma, virtuoses consumados, e, entretanto, alheios à verdadeira arte – e isto remata o grande pensador poeta, porque entre eles o npumero dos hábeis excede de muito o número dos realmente inspirados.

Eu
Monólogo de uma sombra

“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,

Do cosmopolitismo das moneras...

Pólipo de recônditas reentrâncias,

Larva de caos telúrico, procedo

Da escuridão do cósmico segredo,

Da substância de todas as substâncias!

A simbiose das coisas me equilibra.

Em minha ignota mônada, ampla, vibra

A alma dos movimentos rotatórios...

E é de mim que decorrem, simultâneas,

A saúde das forças subterrâneas

E a morbidez dos seres ilusórios!

Pairando acima dos mundanos tetos,

Não conheço o acidente da Senectus

— Esta universitária sanguessuga

Que produz, sem dispêndio algum de vírus,

O amarelecimento do papirus

E a miséria anatômica da ruga!

Na existência social, possuo uma arma

— O metafisicismo de Abidarma —

E trago, sem bramânicas tesouras,

Como um dorso de azêmola passiva,

A solidariedade subjetiva

De todas as espécies sofredoras.

Com um pouco de saliva quotidiana

Mostro meu nojo à Natureza Humana.

A podridão me serve de Evangelho...

Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques

E o animal inferior que urra nos bosques

É com certeza meu irmão mais velho!

Tal qual quem para o próprio túmulo olha,

Amarguradamente se me antolha,

À luz do americano plenilúnio,

Na alma crepuscular de minha raça

Como uma vocação para a Desgraça

E um tropismo ancestral para o Infortúnio.

Aí vem sujo, a coçar chagas plebeias,

Trazendo no deserto das ideias

O desespero endêmico do inferno,

Com a cara hirta, tatuada de fuligens

Esse mineiro doido das origens,

Que se chama o Filósofo Moderno!

Quis compreender, quebrando estéreis normas,

A vida fenomênica das Formas,

Que, iguais a fogos passageiros, luzem...

E apenas encontrou na ideia gasta,

O horror dessa mecânica nefasta,

A que todas as coisas se reduzem!

E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes,

Sobre a esteira sarcófaga das pestes

A mostrar, já nos últimos momentos,

Como quem se submete a uma charqueada,

Ao clarão tropical da luz danada,

O espólio dos seus dedos peçonhentos.

Tal a finalidade dos estames!

Mas ele viverá, rotos os liames

Dessa estranguladora lei que aperta

Todos os agregados perecíveis,

Nas eterizações indefiníveis

Da energia intra-atômica liberta!

Será calor, causa ubíqua de gozo,

Raio X, magnetismo misterioso,

Quimiotaxia, ondulação aérea,

Fonte de repulsões e de prazeres,

Sonoridade potencial dos seres,

Estrangulada dentro da matéria!

E o que ele foi: clavículas, abdômen,

O coração, a boca, em síntese, o Homem,

— Engrenagem de vísceras vulgares —

Os dedos carregados de peçonha,

Tudo coube na lógica medonha

Dos apodrecimentos musculares!

A desarrumação dos intestinos

Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos

Dentro daquela massa que o húmus come,

Numa glutoneria hedionda, brincam,

Como as cadelas que as dentuças trincam

No espasmo fisiológico da fome.

É uma trágica festa emocionante!

A bacteriologia inventariante

Toma conta do corpo que apodrece...

E até os membros da família engulham,

Vendo as larvas malignas que se embrulham

No cadáver malsão, fazendo um s.

E foi então para isto que esse doudo

Estragou o vibrátil plasma todo,

À guisa de um faquir, pelos cenóbios?!...

Num suicídio graduado, consumir-se,

E após tantas vigílias, reduzir-se

À herança miserável dos micróbios!

Estoutro agora é o sátiro peralta

Que o sensualismo sodomista exalta,

Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo...

Como que, em suas células vilíssimas,

Há estratificações requintadíssimas

De uma animalidade sem castigo.

Brancas bacantes bêbadas o beijam.

Suas artérias hírcicas latejam,

Sentindo o odor das carnações abstêmias,

E à noite, vai gozar, ébrio de vício,

No sombrio bazar domeretrício,

O cuspo afrodisíaco das fêmeas.

No horror de sua anômala nevrose,

Toda a sensualidade da simbiose,

Uivando, à noite, em lúbricos arroubos,

Como no babilônico sansara,

Lembra a fome incoercível que escancara

A mucosa carnívora dos lobos.

Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda.

Negra paixão congênita, bastarda,

Do seu zooplasma ofídico resulta...

E explode, igual à luz que o ar acomete,

Com a veemência mavórtica do aríete

E os arremessos de uma catapulta.

Mas muitas vezes, quando a noite avança,

Hirto, observa através a tênue trança

Dos filamentos fluídicos de um halo

A destra descarnada de um duende,

Que tateando nas tênebras, se estende

Dentro da noite má, para agarrá-lo!

Cresce-lhe a intracefálica tortura,

E de su’alma na caverna escura,

Fazendo ultra-epiléticos esforços,

Acorda, com os candeeiros apagados,

Numa coreografia de danados,

A família alarmada dos remorsos.

É o despertar de um povo subterrâneo!

É a fauna cavernícola do crânio

— Macbeths da patológica vigília,

Mostrando, em rembrandtescas telas várias,

As incestuosidades sanguinárias

Que ele tem praticado na família.

As alucinações táteis pululam.

Sente que megatérios o estrangulam...

A asa negra das moscas o horroriza;

E autopsiando a amaríssima existência

Encontra um cancro assíduo na consciência

E três manchas de sangue na camisa!

Míngua-se o combustível da lanterna

E a consciência do sátiro se inferna,

Reconhecendo, bêbedo de sono,

Na própria ânsia dionísica do gozo,

Essa necessidade de horroroso,

Que é talvez propriedade do carbono!

Ah! Dentro de toda a alma existe a prova

De que a dor como um dartro se renova,

Quando o prazer barbaramente a ataca...

Assim também, observa a ciência crua,

Dentro da elipse ignívoma da lua

A realidade de uma esfera opaca.

Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa,

Abranda as rochas rígidas, torna água

Todo o fogo telúrico profundo

E reduz, sem que, entanto, a desintegre,

À condição de uma planície alegre

A aspereza orográfica do mundo!

Provo desta maneira ao mundo odiento

Pelas grandes razões do sentimento,

Sem os métodos da abstrusa ciência fria

E os trovões gritadores da dialética,

Que a mais alta expressão da dor estética

Consiste essencialmente na alegria.

Continua o martírio das criaturas:

— O homicídio nas vielas mais escuras,

— O ferido que a hostil gleba atra escarva,

— O último solilóquio dos suicidas —

E eu sinto a dor de todas essas vidas

Em minha vida anônima de larva!”

Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos,

Da luz da lua aos pálidos venábulos,

Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo,

Julgava ouvir monótonas corujas,

Executando, entre caveiras sujas,

A orquestra arrepiadora do sarcasmo!

Era a elegia panteísta do Universo,

Na podridão do sangue humano imenso,

Prostituído talvez, em suas bases...

Era a canção da Natureza exausta,

Chorando e rindo na ironia infausta

Da incoerência infernal daquelas frases.

E o turbilhão de tais fonemas acres

Trovejando grandíloquos massacres,

Há-de ferir-me as auditivas portas,

até que minha efêmera cabeça

Reverta à quietação da treva espessa

E à palidez das fotosferas mortas!

834,01 ₽
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181 стр. 2 иллюстрации
ISBN:
9783969443835
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Правообладатель:
Bookwire
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